10/11/13

Under the Dome - Stephen King - 2009

 
Under the Dome, um título que traduzido para português resultaria em algo semelhante a Debaixo da Redoma, é o último romance publicado por Stephen King, em 2009. Apontado como uma espécie de sucessor espiritual de The Stand (1978) – talvez o livro mais aclamado de entre a sua vasta obra – e publicitado como o seu thriller mais conseguido desde então, Under the Dome acaba por defraudar, no final, as expectativas optimistas criadas em seu redor. De uma outra perspectiva, o livro confirma – ou torna a evidenciar - uma certa inépcia de King em lidar com o enredo fantástico que acondiciona as suas histórias e em apresentá-lo como credível nos contextos em que é utilizado. Um problema que não é recente e que tem por resultado o arruinar, numa série de livros, de toda uma sensação de realidade ilusória em momentos cruciais de desenlace da acção. No caso de Under the Dome em particular, essa vertente fantástica tem a ver com o aparecimento repentino de uma redoma invisível e indestrutível a cobrir a povoação de Chester’s Mill, isolando a comunidade de todo o contacto físico com o exterior. O próprio autor pareceu estar ciente deste handicap e esforçou-se na medida do possível para evitar qualquer exposição do assunto “fantástico” até mesmo ao final do livro – quanto menos falasse dele, melhor. O leitor sabe que a redoma existe, obviamente, já que toda a narrativa do livro no que concerne a desenvolvimento da intriga é resultado das consequências do estranho acontecimento, mas fica sempre às escuras sobre o que causou a situação – e com essa dúvida surge uma outra relacionada com o género literário: será que é coisa do sobrenatural, ou será que é coisa dos domínios da FC (ou ainda, de uma junção das duas)?

São raros os trechos em que o assunto “origem do fenómeno” é abordado directamente, e inexistentes aqueles em que sobre ele é levantada uma ponta do véu, à excepção de duas ou três páginas explicativas quase a encerrar a narrativa. Esta ideia de ocultação da vertente fantástica - um artifício que me parece consciente e propositado - dá a King a oportunidade para iniciar e desenvolver a história recorrendo às ferramentas que melhor domina: as que moldam as personagens e as relacionam entre si dentro daquela comunidade fechada. Ao alterar uma concepção adquirida da realidade e ao aprisionar uma cidade inteira dentro de um espaço físico impenetrável, King apetrecha-se da matéria-prima natural para desenvolver uma série de enredos paralelos que se cruzam ao virar de cada esquina e que voltam a desenhar um panorama maniqueísta que é típico nas suas histórias: a eterna luta do bem contra o mal, com a consequente definição de lados para cada personagem. Quanto a isto, nada de novo ou particularmente relevante, apesar da batalha, desta vez, ser protagonizada completamente à margem da vertente “fantástica” do livro, já que é de uma luta pela posse política e institucional da povoação que se trata – são os políticos locais que tentam desesperadamente manter o controlo do poder instituído contra um militar entretanto empossado pela Casa Branca, que por acaso se encontrava na povoação quando o fenómeno ocorreu, e que tem instruções para os render. Há interesses de cada um dos lados que justificam este desenvolvimento narrativo, sendo que ambos vão tentar manipular a opinião da população local a seu favor. Em paralelo, um grupo civil organizado tenta descobrir a fonte de energia que está a alimentar a redoma.

Mesmo que a primeira metade do livro represente uma tentativa hábil, entusiasmante, e quase conseguida de regresso a um modelo que já não se via nele há décadas, o de ‘Salem’s Lot, de The Stand ou de It, por exemplo, tudo cai por terra daí em diante. Digo “quase conseguida” porque o nível de identificação emocional que criamos com as personagens, mesmo nos melhores momentos narrativos, não chega ao patamar daquilo que sentimos nessas obras. O personagem principal não arranca a empatia necessária para que nos interessemos pela resolução da sua situação. As saudades que deveríamos "sofrer" com a conclusão do romance aparecem antes como um alívio. Os objectivos terão sido demasiado ambiciosos neste livro, a fasquia colocada demasiado alta, já que a meio caminho o gás esgota-se e King depara-se com uma enorme dificuldade em terminar os múltiplos enredos que até aí criou. Exemplo representativo deste desnorte na ambição é a enorme lista de personagens que nos é apresentada antes do início da narrativa. Uma lista que se revela útil (porque a ela iremos recorrer durante a leitura da obra) mas que ao mesmo tempo demonstra um excesso e uma consequente dispersão de pontos de vista que evitam a familiarização necessária com as personagens mais relevante. Não me lembro de alguma vez ter tido necessidade de olhar para um lista destas num livro de King para me lembrar de quem eram as personagens, nem sequer nos sete volumes no extenso Dark Tower. Sem este acondicionamento emocional para sustentar as restantes debilidades, a coisa torna-se complicada de gerir. A partir de metade do livro os acontecimentos tornam-se erráticos, dispersos, e sobretudo supérfluos – no sentido em que páginas e páginas de narrações são desperdiçadas em acontecimentos que depois se revelam circulares, ou que terminam em becos sem saída, e que não necessitavam de tais desenvolvimentos para encontrarem a sua conclusão. O único interesse na manutenção da leitura fica a dever-se, então, à tal dúvida de que falei anteriormente e que persiste, mesmo ao de leve, no leitor: perceber o que originou a formação da redoma. Infelizmente, e para reforçar a ideia de que King iniciou a escrita do livro sem saber como pretendia terminá-lo, a fórmula arranjada para o concluir corresponde a um remate frouxo e sem convicção que só por muito acaso entra na baliza e que ganha contornos de solução Deus Ex-Machina.

Muito por alto, há três tempos narrativos distintos ao longo do livro:

Na primeira metade, cerca de 400-450 páginas, o ritmo é pautado por uma série de efeitos de causa e consequência lógicos, que frequentemente surpreendem o leitor, que dão genuína energia e ferocidade à intriga, e que o mantêm agarrado à leitura. Os suportes principais que alimentam este interesse são os efeitos da redoma sobre a vida da população (com a escassez de víveres e a desordem social a ameaçarem a paz do dia-a-dia), a construção psicológica das personagens (onde que King se movimenta como um peixe na água) e a encenação dos vários atritos que inevitavelmente surgem quando forças opostas se cruzam na mesma rua. Uma das sequências mais conseguidas do livro acontece praticamente ao fechar do pano desta primeira parte; foca a formação de uma insurreição popular - uma mole humana que colectivamente se torna um animal raivoso fora de controlo - à porta de um super-mercado de bairro, na altura em que as pessoas, pacatas até esse momento, se apercebem que os alimentos já não estão há venda e terão de ser racionados.

Durante a maior parte da segunda metade, e até cerca de 80 páginas do fim, o desnorte toma conta das ideias de King e temos direito a 400 páginas de palha rebuscada que só aguentamos porque queremos saber o segredo da redoma. O gás termina justamente porque não há mais desenvolvimento de personagens para fazer e todos os caminhos de intercalação já foram percorridos. A continuação de cada uma das situações torna-se arrastada e na maior parte dos casos perde o sentido.

Finalmente, as últimas 80 páginas começam com a tal solução Deus Ex-Machina, que resolve o destino das personagens quase de uma só penada, e que culmina com a revelação final que tanto se aguardava – um desenlace paupérrimo que tem tanto de desinteressante como de frustrante.

Se fosse possível esquematizar num modelo físico os meus níveis de interesse ao longo da leitura e a quantificação do respectivo gosto, diria que os valores acompanham a forma concêntrica e abaulada da redoma que cobre Chester’s Mill. Até metade do livro o valor vai crescendo até ao ponto de inflexão (que numa escala de zero a dez corresponderá a um nove) e depois começa a decrescer de forma simétrica até voltar bater no zero com a conclusão. É mais adequado optar por este tipo de avaliação final da obra em contrapartida a uma nota média classificativa que, dadas as característica erráticas e pouco homogéneas da narrativa, resultaria num valor sem representatividade. Em todo o caso, esse valor seria negativo.

Sem comentários:

Enviar um comentário