10/11/13

Ponyo à Beira-Mar - Hayao Miyazaki - 2008




Gake no ue no Ponyo - Ponyo à Beira-Mar
, a última incursão de Hayao Miyazaki no cinema (é de 2008 – aguarda-se com expectativa um novo filme de animação já este ano, com o título Kaze Tachinu - The Wind Rises), adapta livremente o conto de Hans Christian Andersen, A Pequena Sereia, dotando-o do cunho pessoal facilmente identificável deste realizador, quer pela abordagem técnica ao desenho propriamente dito (tudo feito “à mão”, de forma tradicional, sem recurso a computadores), quer pelas temáticas que lhe são caras, e que têm pontuado a sua obra de forma regular – o apelo sentido à necessidade de conviver em harmonia com a natureza; a infância como globo ocular narrativo, “verdadeiro”, incorrupto, mas sobretudo incorruptível; a inocência, a justeza, a generosidade e a amizade incondicional como referências basilares da forma de partilhar a vida; e uma penetrante dose de subversão comportamental humana, utilizada ora de forma subtil, ora de de forma descarada e espalhafatosa, e que nos deixa constantemente desarmados face ao modo como a “realidade” é aceite pelas personagens. A envolver tudo, o realismo mágico e a fantasia pura.

Ponyo é uma pequena sereia de 5 anos (de aspecto muito diferente daquilo que será a “visão clássica ocidental” de tais seres) que um dia decide, à revelia do pai, conhecer o mundo da superfície. Fujimoto, uma espécie de clone do Capitão Nemo convertido por Miyazaki ao seu universo muito próprio, é um cientista-alquimista-feiticeiro carrancudo que vagueia solitário pelo fundo dos oceanos enquanto planeia a sua vingança contra a raça humana (e que consiste, de forma simplificada, em dotar os seres marinhos de uma força sobre-humana que os faz crescer e desenvolver geneticamente, através de uma poção mágica por si desenvolvida). Depois de uma série de peripécias, e uma vez “desembarcada” em terra, Ponyo é recolhida num balde de praia por Sôsuke, um rapaz da sua idade. A afinidade entre ambos é imediata, e Ponyo decide torna-se humana para poder estar sempre junto de Sôsuke, uma resolução que vai desencadear uma catástrofe à escala planetária (não, não me enganei a escrever).

Se em termos narrativos Ponyo é um filme sereno e deliberadamente simples de seguir (o mais simples de todos os de Miyazaki, embora contenha algumas camadas de entendimento menos óbvias), em termos visuais a energia que emana é transcendente e transbordante (de forma literal) – mais do que o normal nas suas obras. Há uma imensa generosidade e abundância nas formas, nos feitios, nas cores, nos movimentos (revoltos e incessantes), na magia com que a vida é projectado no ecrã – a habitual celebração da natureza é aqui uma explosão contagiante e imparável de alegria, e o mais interessante é que resulta por completo da materialização física do intelecto de Ponyo – da sua vontade inconsciente. Há um elo directo que liga a “catástrofe natural” (convém agora usar as aspas, pela tal questão da subversão comportamental, mesmo que em causa esteja um maremoto devastador e uma subida do nível das águas na ordem de umas dezenas de metros) ao estado de espírito de Ponyo, e ao seu desejo incontido de chegar junto de Sôsuke. Na melhor sequência do filme (provavelmente uma das melhores de todo o repertório de Miyazaki), a garota de cinco anos corre sobre as ondas de um vagalhão gigantesco de água, galgando tudo no seu caminho, ao som de um tema musical que evoca com espectacularidade “A Cavalgada das Valquírias”, de Wagner. E o que diz o capitão de um cargueiro depois deste “monstro” quase ter afundado o navio em que segue? “Uma menina sobre as ondas? Devia ter a idade do meu filho”….

Ponyo à Beira-Mar é um filme sobre a capacidade que a amizade e amor têm de eliminar fronteiras difíceis, e sobre o desejo de unir dois mundos que cada vez se vão distanciando mais, o da natureza e o do homem, um desejo que no filme se materializa personificando o primeiro e dotando o segundo de um espírito mais generoso e consciente. Nos dois permanece contudo o olhar inocente e doce de uma criança - o factor que faz este "sonho" tornar-se palpável, ainda que inatingível, porque todos passámos por ele no início das nossas vidas. É um filme que tem um pouco de quase todas as obras anteriores deste realizador – desde o saudoso Conan, o Rapaz do Futuro (são inúmeras as referências a esta série magnífica), ao mundo alternativo de A Viagem de Chihiro, passando pela emoção ternurenta de O Meu Vizinho Totoro.

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