21/11/13

Flowers for Algernon - Daniel Keyes - 1966



Charlie Gordon é um deficiente mental a quem um dia é dada a hipótese de se tornar inteligente, através de uma operação experimental ao cérebro. A operação foi testada anteriormente em ratos e os resultados são promissores; a equipa de cientistas responsável pela descoberta utiliza Algernon, um desses ratos, numa série de exercícios cronometrados de fuga de labirintos, lado a lado com Charlie, para perceberem até que ponto a experiência pode resultar num humano. De início Charlie é batido sistematicamente por Algernon, mas à medida que o tempo avança, também o seu QI vai aumentando. Charlie começa então a olhar para o mundo que sempre conheceu, e em que sempre se sentiu seguro, de uma perspectiva que tem tanto de fascinante como de assustadora. 
 
Tudo foi tratado de forma excepcional neste livro: desde a linguagem utilizada pelo personagem principal, Charlie, que narra a história a partir de relatórios escritos na primeira pessoa, em formato de diário, passando pelo desenvolvimento narrativo (a sucessão de factos cronológicos e a forma como são encadeados e desenvolvidos estão sempre um passo à frente das previsões do leitor), e terminando na absoluta segurança com que é gerida a ligação entre racionalidade e emotividade, nomeadamente quando a evolução natural de um destes vectores é adulterada e acelerada no tempo milhares de vezes e a outra não consegue acompanhar - porque necessita de experiência de vida, que não tem, para "aprender".

O livro começa com a seguinte entrada no diário:
«progris riport 1 martch 3
Dr Strauss says I shoud rite down what I think and remembir and evrey thing that happins to me from now on. I dont no why but he says its importint so they will see if they can use me. I hope they use me becaus Miss Kinnian says mabye they can make me smart. I want to be smart. My name is Charlie Gordon I werk in Dormers bakery where Mr Donner gives me 11 dollers a week and bred or cake if I want. I am 32 yeres old and next munth is my brithday. I tolld dr Strauss and perfesser Nemur I cant rite good but he says it dont matter he says I shud rite just like I talk and like I rite compushishens in Miss Kin-nians class at the beekmin collidge center for retarted adults where I go to lern 3 times a week on my time off. Dr. Strauss says to rite a lot evrything I think and evrything that happins to me but I cant think anymor because I have nothing to rite so I will close for today... yrs truly Charlie Gordon.» 

Um pouco mais para a frente, já depois da operação, temos isto:

«Apr 15
 Miss Kinnian says Im lerning fast. She read some of the Progress Reports and she looked at me kind of funny. She says Im a fine person and Ill show them all. I asked her why. She said never mind but I shouldnt feel bad if I find out everybody isnt nice like I think. She said for a person who god gave so little to you done more then a lot of people with brains they never even used. I said all my friends are smart people but there good. They like me and they never did anything that wasnt nice. Then she got something in her eye and she had to run out to the ladys room.
Apr 16
Today, I lerned, the comma, this is a comma (,) a period, with a tail, Miss Kinnian, says its importent, because, it makes writing, better, she said, somebody, coud lose, a lot of money, if a comma, isnt, in the, right place, I dont have, any money, and I dont see, how a comma, keeps you, from losing it.»

Não há almoços grátis, e é isso que Charlie vai descobrir quando a sua mentalidade emocional, própria de uma criança de 10 anos, é confrontada subitamente, numa questão de semanas, com os problemas do mundo dos adultos. A realidade passa a ser um pau de dois gumes - se por um lado a sua capacidade de raciocínio e aprendizagem é elevada bem acima dos padrões normais, a sua vida emocional rapidamente chega a um beco sem saída. Todas as pessoas que conhece e ama começam a olhá-lo com desconfiança, ao mesmo tempo que as recordações do passado (coisa que Charlie nunca teve até aí, por efeitos da sua incapacidade) começam a atormentá-lo e a alterar a sua percepção sobre aquilo que sempre tomou por adquirido. Privado do natural tempo de aprendizagem que acompanha o crescimento humano, e sem um tutor apropriado para lhe dar a segurança necessária, Charlie decide dedicar-se a estudar o próprio projecto científico que lhe aumentou a inteligência.

Mais do que uma simples narrativa de entretenimento, a obra é uma fábula moderna de Ficção Científica sobre a própria condição humana, com várias camadas de sub-texto capazes de desencadear a reflexão no leitor. É um prazer (por vezes difícil de digerir) acompanhar tanto a prosa como o facto narrativo. É um prazer ler sobre uma matéria delicada e chegar ao fim a saber que Daniel Keyes tratou do assunto sem deslizes, sem optar por caminhos fáceis, e sobretudo sem cair na pieguice - mesmo quando, perante a impotência total de Charlie Gordon, somos assaltados pelas mais básica emoções humanas.

O que é melhor, ser ignorante e feliz ou inteligente e miserável?
Haverá um equilíbrio certo entre a bondade e a inteligência? 
De que é que depende a felicidade humana?
E até que ponto podemos intervir para a determinar?
Valerá a pena tentar, sabendo que tudo tem um fim?


Estas são alguma das questões com que no final o leitor terá forçosamente de se debater. Com esperança, o caminho para encontrar as respostas torná-lo-á numa pessoa diferente - é tudo o que se pode esperar de um bom livro, que no final não sejamos a mesma pessoa do que antes de o iniciarmos.  

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Este artigo diz respeito ao romance publicado em 1966, que não tem edição portuguesa, e não ao conto original, publicado em 1959. Esse conto foi publicado por cá, numa colectânea da Colecção Argonauta, nº 100. A história, pelo que dizem, é a mesma, com mais ou com menos desenvolvimento narrativo à mistura, conforme a versão, sendo que o conto ganhou o prémio Hugo, e o romance ganhou o prémio Nebula - dois dos mais prestigiados galardões internacionais que premeiam obras de Ficção Fantástica.

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