23/11/13

The Thin Red Line - A Barreira Invisível - Terrence Malick - 1998

 

I seen another world. Sometimes I think it was just my imagination. - Private Witt

A Barreira Invisível, a mais hipnótica viagem espiritual que o cinema nos deu a ver, não se confina às generalidades a que estamos habituados a assistir num "filme de guerra" segundo as convenções normais do género, pelo menos enquanto mostruário-compêndio de horrores bélicos. Não que essa vertente tenha sido colocada de parte - pelo contrário, as sequências de batalha, magistralmente encenadas a céu aberto, ocupam um espaço importante no filme, e são-lhe até essenciais - mas o que interessa a Malick joga-se noutros quadrantes: a perspectivação, ao nível do pensamento comum, das grandes dúvidas metafísicas da humanidade - como reagimos perante a noção iminente da morte? A que "crenças" nos rendemos nesse momento? O que é que de facto amamos na vida? De que nos recordamos com mais fulgor? Que linha invisível é essa que separa a vida da morte?

Partindo destas linhas orientadoras, e tendo como pano de fundo uma pequena ilha no meio pacífico onde se joga o rumo de uma guerra, o equilíbrio narrativo do filme - notável exercício lírico de meditação e introspecção - ergue-se num delicado debate ideológico organizado por camadas, num jogo de confrontos entre as vozes interiores de cada soldado e uma determinada consciência social, colectiva e una, tornada coesa à força das normas impostas pelo exército, mas à beira de se desfazer em cacos perante a exposição continuada à agonia e ao sofrimento. Na periferia deste debate tornado combate, encontra-se aquilo que é mais imediato aos sentidos: à espectacularidade imersiva do cenário natural daquela ilha (a uma natureza que "olha" com indiferença para os soldados que estão de passagem), à sua fauna e flora, contrapõe-se a crueza dos horrores da guerra, do medo, do sangue, das mutilações - da morte; ao passo que no centro, esse debate interior passa para o plano da fé e da crença, e para a forma como consequentemente se exterioriza em acções.

A dúvida impera e persiste. Como pode o espírito divino - enquanto centelha de vida - coabitar ao mesmo tempo, de forma tão intensa e perfeita, no melhor e no pior daquilo que a vida tem para oferecer?

O soldado Witt (Jim Caviezel), a personagem que materializa de forma mais evidente o sentido de harmonia pacificadora que vem "do alto" (e que impregna o filme do início ao fim), aguarda o devir com a serenidade de quem tem uma certeza. A vida é apenas uma etapa num plano mais abrangente, e a morte uma espécie de ritual de passagem que ele espera conseguir transpor de forma digna. Na sua memória está gravada uma epifania, a recordação do momento da morte da mãe, uma lembrança reveladora e desafiante, que ele imaginou ter ocorrido na presença de um anjo. Welsh (Sean Penn) é o seu "opositor retórico", um homem pragmatizado pelo aparelho educador-triturador do exército, o sargento que primeiramente tenta chamar Witt à razão ("There's not some other world out there where everything's gonna be okay. There's just this one, just this rock."), mas que mais tarde, face à incapacidade de lidar com o sofrimento que vê à sua volta e com a imprevisibilidade do destino, acaba a invejar-lhe o sentido de orientação espiritual (o plano da despedida funciona como uma amarga confirmação).

Há outra referência explícita à presença de Deus junto de uma personagem importante, numa situação diversa ao caso de Witt, mas complementar no estabelecimento de um propósito/paralelismo. A determinada altura, o Capitão Staros (Elias Koteas) pede força a Deus para tomar as decisões certas na batalha que se avizinha. Na escuridão da noite, junto dele, enquanto reza, a chama de uma vela acesa agita-se por momentos, como que trespassada por um sopro suave, num plano que é impossível de categorizar como aleatório ou meramente ilustrativo a nível artístico. No dia seguinte, durante a ofensiva, Staros desobedece a uma ordem directa de um superior hierárquico (Nick Nolte) e recusa enviar os homens que comanda para a morte certa. Ele sabe que a sua carreira militar termina ali, mas num momento de clarividência, e enquanto tudo à sua volta sucumbe à surdina das explosões de artilharia, escolhe a preservação da Vida - o caminho de Deus - em detrimento das maquinações orquestradas pelo egoísmo do Homem.

Mas não é a guerra nem as suas marcas que nos ficam a trabalhar nos sentidos depois de o filme ter terminado, é antes aquela luz celestial que de vez em quando atravessa a vegetação e nos banha com um qualquer estado de graça. É a beleza avassaladora e desarmante das imagens de Malick a deslizarem suavemente ao som da música de Zimmer. É a nossa presença passageira e talvez inconsequente enquanto representantes da vida - de um todo em que somos apenas uma pequena parcela - neste mundo. É uma força inspiradora sem paralelo, ainda que equilibrada de forma periclitante entres dois extremos opostos... separados por uma barreira invisível.


Oh, my soul, let me be in you now. Look out through my eyes, look out at the things you've made. All things shining. - Private Train

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