Na vasta filmografia de Martin Scorsese, vistas as coisas a esta distância, e considerando a sua natural atracção por situações de violência latente (que depois expõe de forma hiperbólica), é possível que um título como
Alice Doesn't Live Here Anymore nos pareça estranho, encaixado cronologicamente entre os raivosos e brutais
Mean Streets - Os Cavaleiros do Asfalto (1973) e
Taxi Driver (1976). Nada ligaria um pequeno drama intimista e agridoce, apostado em mostrar o mundo através de uma perspectiva feminina, com uma dona de casa como personagem central, às temáticas caras ao realizador. Olhando mais de perto, percebemos o que interessou tanto a Scorsese a ponto de aceitar filmar um argumento que não procurou em primeiro lugar - antes lhe caiu ao colo, tendo sido proposto por Ellen Burstyn, a actriz que interpreta Alice, e depois de uma primeira consulta a Francis Ford Coppola (Coppola, tal como Scorsese, era na altura um
movie-brat - um dos novos talentos emergentes na América como realizador).
Um dos pilares em que assenta a força do cinema de Scorsese - e para lá do virtuosismo técnico que todos lhe reconhecem - é (e sempre foi) a exploração de uma determinada vertente reprimida/obsessiva na personalidade dos seus personagens, nomeadamente quando estes se acham emocionalmente encurralados, são confrontados com distanciamentos em relação à norma social, ou com situações de sofrimento limite que o contexto envolvente propicia - casos de solidão, rejeição ou exclusão comunitária, por exemplo - momentos de inquietude que terminam invariavelmente em explosões de violência, que autor filma com inegável fascínio pela perversidade. Devemos tanto à inspiração de Robert de Niro quanto à imaginação de Scorsese algumas das mais trágicas e diabólicas figuras que surgiram no cinema na segunda metade do séc. XX, casos de Travis Bickle em
Taxi Driver, Rupert Pupkin no negríssimo
The King of Comedy, e a
reprise de
Max Cady em
Cape Fear, só para citar alguns
.
É evidente que não é bem neste lote que cabe a Alice de Ellen Burstyn, nem o filme tem por intenção mostrar uma descida ao inferno da paranóia psicológica, mas por outro lado a matéria-prima de que se alimenta é em tudo semelhante à das obras mencionadas - a da existência de um ser encarcerado, e o acompanhamento gradual do processo de libertação -, tem é outro contexto. Alice é alguém com uma força de personalidade e uma inteligência imensamente superiores àquilo que a situação social lhe permite manifestar - uma sonhadora remetida ao papel de dona de casa submissa, ignorada pelo marido, e com um filho menor que não sabe como cativar e que lhe dá cabo dos nervos minuto-sim minuto-não. É apenas uma questão de tempo, adivinhamos nós espectadores, até o extremo limite do suportável se achar encontrado e o vulcão resolver acordar - os sinais estão à vista. Só que o destino (ou a pena do argumentista) decide de outra forma: Alice perde o marido num acidente de viação e decide, a partir desse momento, recomeçar a vida do zero, arrumando os pertences, pegando no filho, e arriscando uma viagem inter-estados através da América, para retomar o velho sonho de infância de se tornar cantora. É esta viagem em busca de uma nova Alice que explica o título e a dualidade de significância que este encerra, indicando em simultâneo a viagem de carro propriamente dita (deixando a antiga casa para trás), e a alteração comportamental deliberada (ou intenção disso) que a vai tornar numa pessoa diferente.
Face às temáticas dominantes e ao tom
soft em relação ao que é o habitual de Scorsese, compreende-se o que torna
Alice Doesn't Live Here Anymore num dos filmes mais esquecidos e menos divulgados do autor, uma situação declaradamente injusta, visto que exibe argumentos suficientes para se tornar um objecto de estimação - apreciando-se o estilo de Scorsese, vê-lo 40 anos volvidos torna-se num gratificante prazer cinéfilo - registem estas palavras! É natural que, de entre o conjunto de interpretações, a de Ellen Burstyn seja a mais fácil de elogiar (e merece-o - se o filme necessitasse que o carregassem às costas, ela, por si só, bastaria), mas não há que esquecer o acerto e a sobriedade do restante elenco, em particular de Alfred Lutter (o pequeno actor que na tela faz de filho de Alice). De notar ainda a curta mas saborosa presença de Jodie Foster, numa das primeiras incursões no cinema, dois anos antes de aparecer totalmente transfigurada em
Taxi Driver, na comovente figura de prostituta-menina que é explorada por Sport (Harvey Keitel) nas ruas de Nova Iorque
Não percam pois o rasto de Alice. É possível que tenham uma grata surpresa.
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