27/11/13

Heaven's Gate - As Portas do Céu - Michael Cimino - 1980




Resumindo uma longa e atribulada história, depois do êxito retumbante de The Deer Hunter - O Caçador (1978), e da sua aclamação mediática junto dos óscares, a United Artists decidiu dar carta branca ao realizador Michael Cimino para o projecto seguinte, incluindo a liberdade critativa e os meios financeiros que achasse necessários para o erguer segundo a sua visão. Heaven's Gate é o fruto dessa visão - uma obra desmesurada e megalómana, mas que vale todo os dólares que custou a produzir. Aquando da estreia, o filme resultou num fiasco monumental junto das bilheteiras e num escândalo financeiro que levou o estúdio à falência, arruinando a eventual futura carreira de Cimino e condicionando irrevogavelmente a forma como as grande produtoras financiariam o cinema daí em diante (basicamente, segundo o princípio: "não há mais pão para malucos"). A versão de Heaven's Gate apresentada para distribuição generalizada nas salas (retalhada - cerca de uma hora mais curta do que a original tal como pensada por Cimino, com 219 minutos), foi trucidada uniformemente pela crítica norte americana e ignorada pelo público em geral, chegando a ser apelidada de "o pior filme de sempre".


 O tempo decorrido desde então, o acolhimento entusiástico na Europa, e o lançamento da versão mais longa de acordo com o desejo do realizador (o directors' cut de 216 minutos), exibida novamente em 2012 no Festival de Veneza e lançada no catálogo da Criterion numa cópia imaculada, reabilitaram até certo ponto o filme, mas ainda terão de passar muitos anos - mais uma geração? - até que as cicatrizes do passado desapareçam por completo e lhe seja feita inteira justiça. Porque Heaven's Gate é um objecto de cinema singular, belíssimo na sua concepção e escopo visuais, filmado por um cineasta - também ele singular - que sabe dar o tempo necessário às sequências para que respirem, para que nos apaixonemos pelas personagens, paisagens e cenários na mesma proporção em que também ele próprio o declara através da câmara, de forma incondicional.


Trata-se um Western-anti-Western, prova de amor e de acusação em simultâneo, actualíssimo enquanto denúncia da ausência de valores morais e da hipocrisia reinante nas instituições "democráticas", que ousa demolir as fundações históricas da sociedade Norte Americana com tanto ou mais ímpeto com que The Deer Hunter o havia feito em relação ao envolvimento terrorista dos states no Vietname. A este respeito, dificilmente encontraremos no cinema outro caso tão extremista e determinado no apego ao realismo e na vontade-necessidade de revelar "a verdadeira verdade" (e talvez que esta amargura explícita e desconfortável em relação a valores que aprendemos desde cedo a respeitar seja uma das razões que explicam o seu fracasso comercial - uma, porque haverá outras). Nem Scorsese conseguiu ser tão cru ou cruel, vinte anos volvidos, no seu Gangsters of New York (2002).


Heaven's Gate é uma obra com um sentido contextual estético que borda o maníaco, com uma minúcia no detalhe e no pormenor que desafia a nossa credulidade (no melhor dos sentidos); uma boa parte do dinheiro colocado à disposição de Cimino terá sido gasto com este fim em mente: tudo parece real, tudo tem uma aparência de "usado", de "vivido", de "adequado" às personagens e às sociedades que estas habitam ("sociedades", plural, porque a abordagem é transversal - e vertical - no que respeita a classes e a comunidades). De facto, no que concerne a questões de reconstituição visual histórica (ainda que os factos tenham sido ficcionalizados), a sensação é a de "estarmos lá", naquele sítio, naquele momento. O efeito será tanto mais estranho quanto o nosso hábito de anos e anos a ver cenários recriados de forma teatral, que aceitamos como certos já sem pensarmos no assunto, mas que não revelam a essência dos hábitos diários - por outras palavras, foram dispostos para fornecer um contexto material, mas à conta de tanta preocupação simbólica acabam por não esconder uma dimensão extra-narrativa postiça, que soa a "falso" (um bom exemplo disto, e para lá de todos os méritos que o filme possa ter, é o que sucede em Dances With Wolves - 1990). É difícil não deixarmos cair o queixo uma quantas vezes ao longo da visualização de Heaven's Gate, não nos perdermos na imersividade realista dos cenários interiores e na sua total harmonia em relação à envolvente paisagística natural, com as gigantescas escarpas montanhosas a fecharem o último plano ao fundo no horizonte, tal com sucedia na pequena comunidade de Clairton, em The Deer Hunter. Não há Western mais conseguido ou visualmente estimulante do que este - nem as grandes obras de Ford, Hawks ou Mann, em toda a sua magnificência telúrica e força cenográfica, chegam perto de Heaven's Gate. Até pode ser que Cimino tenha tido a seu favor o legado de tais mestres, mas a verdade é que soube assimilar, mostrar que aprendeu a lição, e ainda acrescentar o seu ponto de costura. Neste domínio, o filme é um triunfo artístico absoluto, uma obra deslumbrante que se absorve como uma valsa, elegante, sóbria e moderna, que conserva no entanto um certo formalismo clássico que já vinha morrendo por essa altura e do qual pouco ou nada resta no cinema que se faz actualmente.



Mas não é só por aqui - até porque o contrabalanço temático e o tom desencantado com que este nos é servido são amargos e doloroso (muito... muito...). Nem a palavra Western, nem a narração histórica (ainda que ficcionalizada) daquilo que se sucedeu no Wyoming,  na Guerra de Johnson County, poderiam alguma vez chegar para resumir o furacão destrutivo que nos aguarda em Heaven's Gate. No seguimento da "carta aberta" de denúncia à falsidade democrática exposta em The Deer Hunter, filme com o qual Heaven's Gate partilha de inúmeras características, Cimino enterra mais fundo o dedo na ferida e mostra-nos sem piedade nem pudor a falta de limites e a podridão xenófoba que "vem de cima" - dos powers that be institucionais. Sob o falso e conveniente pretexto de eliminar um pequeno grupo de "ladrões de gado e anarquistas" que ameaça a soberania do estado em Wyoming, em 1890, uma influente associação de grandes proprietários, com ligações ao poder político, elabora uma lista com 125 nomes de emigrantes europeus a abater, gente que atravessou o Atlântico à procura de uma nova oportunidade e que tem no sustento da terra o único meio de subsistência. A aplicação da "justiça" propriamente dita ficará a cargo de um grupo de pistoleiros profissionais - mercenários contratados a peso de ouro para efectuarem a limpeza.
 

Para quem não havia entendido a mensagem passada em The Deer Hunter, (lembremo-nos de Jane Fonda...), Cimino explicita-a agora com todas as letras do alfabeto: a operação tem o aval directo do Presidente dos Estados Unidos da América(!), sobrepondo a jurisdição de qualquer agente da autoridade local e impedindo a própria cavalaria de intervir em defesa da população estrangeira. É a "lei" ao serviço do assassinato selectivo e em massa, não só desses 125 nomes, como das respectivas famílias e de mais quem se lhes oponha - a pulverização de uma fatia social incómoda de um ponto de vista monetário e político. E quem se lhes opõe é o marshal local, James Averill (Kris Kristoffersen), um herói fora do seu tempo, oriundo das classes altas, mas que conserva os princípios morais que lhe foram transmitidos durante a educação, decidindo tomar o partido da comunidade emigrante - de quem de resto é vizinho - e organizar um foco de resistência local. Averill está para Heaven's Gate como Michael (Robert De Niro) estava para The Deer Hunter, personagens de carácter forte e espírito determinado, mas de onde não estão ausentes ambiguidades, contradições e dilemas morais que resultam em acções "menos dignas", como a traição a um amigo (Christopher Walken) ou o abandono de uma causa social por conta do amor/rejeição de uma mulher (Isabelle Huppert), por exemplo.


É em Averill que se intersectam os dois eixos temáticos narrativos principais de Heaven's Gate e se constrói a conflituosa ponte entre uma realidade individual em declínio e o drama social de toda uma comunidade. Num dos eixos estará então a opressão dos poderosos sobre os desfavorecidos - com um massacre a avizinhar-se para breve -, e no outro o fecho anunciado de um ciclo na vida de um homem profundamente desiludido com as expectativas que não conseguiu concretizar desde a juventude. A estruturação narrativa do filme, mais uma vez à semelhança do que sucedeu em The Deer Hunter, é feita por compartimentos cronológicos que acondicionam e dão espessura às personagens. Há um "antes" (a festa de formatura de Averill em Harvard), um "durante" (a guerra de Johnson County) e um "após" (Averill a espreitar sobre o passado, a partir de uma terceira idade que o aprisiona). Sob esta perspectiva, Heaven's Gate afigura-se também como uma reflexão melancólica bastante amarga sobre o desencanto da vida, o envelhecimento, e sobre aquilo se vai esfumando à medida que certas decisões vão sendo tomadas - até que nada mais há a fazer para recuperar os sonhos que em determinada altura pareceram tão certos e promissores. Pelo meio, alguns raros momentos de felicidade...


Averill e Ella - ao som de David Mansfield


James Averill: «I'm getting old...»
Ella Watson: «Do you think everything stops because you're getting old?»
James Averill: «Maybe it does.»


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