Muito de vez em quando calha-nos a sorte de sermos agredidos por um filme assim, um objecto em tudo fascinante, avassalador à sua passagem, de uma intensidade que fere alma, e que nos deixa como que atropelados, de pernas para o ar, com os pensamentos em curto-circuito e cicatrizes para cuidar, a tentar perceber que raio nos atingiu.
Os Inadaptados é um desses filmes, surpreendente para quem já tenha por certo não se surpreender com nada, mesmo considerando a priori a excelência dos nomes envolvidos e aquilo que deles podia ser tomado como valor adquirido. O filme é uma jóia de rara pureza que não denuncia o equilíbrio precário que envolveu as filmagens, fustigadas por todo o tipo de factores externos intrusivos, problemas com drogas e álcool, e paragens forçadas pelo meio - um conjunto de situações que paradoxalmente parece ter sido aproveitado e capitalizado com algum cinismo a favor do resultado final, como de resto nos é sugerido pela intensidade com que a câmara se alimenta, de forma quase canibal, do material humano que tem à frente. De forma canibal porque, é sabido, o que se ia passando fora da tela com os actores (em crise existencial, no caso dos dois principais) e com o realizador (que aparecia fortemente alcoolizado no estúdio), transparecia, subtilmente ou não, para dentro do filme. Jogava-se com as cartas na mesa, num terreno em que a arte e a vida dispensavam as fronteiras delimitadores. Posto de outro modo, há um elenco de luxo e mais a sorte de terem sido feitas as escolhas certas para os papéis (sorte dentro e fora do filme), há um espaço desmesurado para interpretar e desenvolver a riqueza das personagens, e há um realizador ávido por captar toda e a mais pequena manifestação de emoções humanas geradas pelo choque de personalidades naquele contexto electrizante. Junte-se a isto o argumento escrito pelo dramaturgo Arthur Miller (em processo de separação, na vida real, com Marilyn Monroe), carregado até transbordar pelas mais fabulosas linhas de diálogo de que me lembro de ouvir num filme (a última vez que tive uma sensação aproximada foi no inimitável Jonnhy Guitar), e passamos o filme a olhar, extasiados, para a divindade da sua criação.
Duas estrelas brilham mais alto neste firmamento: Clark Gable e Marilyn Monroe. Deste par surge uma química bigger than life que perfuma todo o filme. A centelha de vida que as suas personagens fazem arder no ecrã, ora explosiva, ora melancólica, não é deste mundo. Ninguém é assim na realidade. Ninguém fala daquela maneira. Ninguém se expõe de forma tão aberta à voracidade de um contexto envolvente que é desconhecido. Ninguém se larga de forma tão livre à mercê das emoções (não há qualquer vislumbre de uma atitude racional a partir do minuto 10 na narrativa). Ninguém confia de forma tão pura e fácil o seu amor a um estranho. E contudo, não há pessoas mais humanas do que aquelas. É como se nas duas horas de filme tivesse cabido a súmula do género humano no que respeita ao modo como este, perdido e confuso, olha para si próprio e, encontrando-se abandonado, se relaciona depois com os outros. O título, a esse respeito, foi exímio a acertar no alvo. Não é um filme de fácil visualização nem de saudável digestão. Chega a ser penoso e deprimente, pela dor, tristeza e decadência da condição humana que tão intensamente expõe. Quem esteja à espera de entretenimento, procure noutro lado - Here there be tygers...
Uma mulher de meia-idade fragilizada, a braços com um divórcio, acumulando o peso de uma vida em que nunca se sentiu verdadeiramente amada por ninguém, aceita o convite de dois estranhos (o mecânico que lhe arranjou o carro, e um cowboy amigo deste) para um passeio pelas planícies inóspitas do oeste - um passeio pelos cenários de uma terra que outrora gerou um mito e fundou uma nação. O mote para a viagem é um
resignado mas esperançoso “Let's just live…”. Pelo caminho junta-se ao
grupo mais um ser inadaptado, um rapaz que não tem onde cair morto e que pretende ganhar uns trocos participando num espectáculo de rodeo. O que se segue não pode ser descrito por palavras. A impetuosidade e a crueza do filme têm de ser experimentadas para bom entendimento. Marilyn, habitualmente actriz de personagens que reúnem aquele misto de inocência e fragilidade a uma vitalidade corporal e a uma sensualidade capaz de transtornar o mais sério dos homens, consegue aqui uma entrega que não se lhe adivinharia a partir das comédias que anteriormente protagonizou. Viria a ser o seu último filme. Tal como para Clark Gable, que morreria dez dias depois de as filmagens terem terminado. O destino estava à espreita, colocando-lhe, nos lábios do personagem, a seguinte linha: “Honey, we all got to go sometime, reason or no reason. Dyin's as natural as livin'. The man who's too afraid to die is too afraid to live”.
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