- Felizmente que a tropa há-de torná-lo um homem.
Esta profecia vigorosa, transmitida ao longo da infância e
da adolescência por dentaduras postiças de indiscutível autoridade,
prolongava-se em ecos estridentes nas mesas de canasta, onde as fêmeas do clã
forneciam à missa dos domingos um contrapeso pagão a dois centavos o ponto,
quantia nominal que lhes servia de pretexto para expelirem, a propósito de um
beste, ódios antigos pacientemente segredados.
Um bombardeamento ideológico intenso, quase como uma lavagem ao
cérebro. Pega-se no livro (neste, no anterior...), algumas páginas volvidas e
estamos mental e emocionalmente esgotados, enjoados e enojados com realismo cru da
abordagem. O bombardeamento é implacável, constante, não deixa, não há espaços
para descansar - pousar o livro não chega. Serve-se de palavras duras, agressivas,
de frases excessivamente longas, sórdidas, carregadas de adjectivos e
referências culturais dispersas, construídas de forma a nos empurrarem a
atenção para o fundo de um labiríntico poço de funcionalismos metafóricos.
Bem-vindos ao início do inferno da escrita de Lobo Antunes. Se ainda por lá não
passaram, façam o favor.
Conhece Santa Margarida? Digo isto porque, às vezes, na
messe dos oficiais decorada com o mau gosto impessoal da sala de espera de um
dentista de Moscavide (flores de plástico, oleografias imprecisas cujos
arabescos monótonos se confundem com o papel de parede, cadeiras hirtas
semelhantes a quadrúpedes desirmanados pastando num acaso sem simetria as
franjas gastas dos tapetes), a majores em reboliço abandonavam os copos de
uísque, de cubos de gelo substituídos por dados de póquer, para, erectos como
soldados de chumbo barrigudos, saudarem a entrada de uma senhora que qualquer
coronel subitamente urbano comboiava, deixando atrás de si, perceptível na
tremura dos galões, um rasto cochichado de cio de caserna, que se cristalizaria
em esquemas explicativos no mármore venoso dos urinóis, destinado à
alfabetização dos faxinas.
Um homem, o narrador, alguém que se confunde com o próprio
autor do livro a ponto de acreditarmos que são a mesma pessoa, fala para uma
mulher enquanto a tenta seduzir. O tema do monólogo é a guerra colonial e a sua
participação como médico de campanha em Angola, 1971; as recordações, os
efeitos devastadores que permanecem para a posteridade, para sempre, na memória
de quem esteve no Ultramar, atirados para o livro numa dislexia anacrónica que não separa o passado do presente,
como que a dizer: somos ainda aquilo que um dia fomos obrigados a ser. Os
capítulos são as letras do alfabeto, e o fio condutor leva-nos por todos os
recantos da recordação: eis aqui a vergonha na sua totalidade, contada em todas
as letras, para que não haja dúvidas, para que nada fique esquecido. Para Lobo
Antunes a experiência da guerra significa uma espécie renascimento: os homens
que regressaram vivos voltaram a nascer pelo útero de uma puta chamada Pátria.
Porque camandro não se fala nisto? Começo a pensar que o
milhão e quinhentos mil homens que passaram por África não existiram nunca e
lhe estou contanto uma espécie de romance de mau gosto impossível de acreditar,
uma história inventada com que a comovo a fim de conseguir mais depressa (um
terço de paleio, um terço de álcool, um terço de ternura, sabe como é?) que
você veja nascer comigo a manhã na claridade azul pálida que fura as persianas
e sobe dos lençóis, revela a curva adormecida de uma nádega, um perfil de
bruços no colchão, os nossos corpos confundidos num torpor sem mistério.
O personagem aparenta ser o mesmo de Memória de Elefante, a
época abordada também, a perspectiva é que mudou de objecto focado: a família, a
esposa e as filhas que eram o centro do mundo no primeiro livro, vêem-se
substituída pelas explosões de minas e morteiros, pelo sangue escuro e vísceras
dos soldados desafortunados, pelos cheiros da terra, do vómito, do esperma e
da fruta de África, pela carne ferida, decepada e amputada, pelo sexo exposto
ao abuso da violação, pelas prostitutas de cabarés rascas das cidades
decrépitas de Angola, pela Pide e pelo Estado Novo, pelos crimes de guerra e
pelas vítimas do medo, por uma vivência de absurdo completo em que nada parece
fazer sentido e de onde não há como escapar - só pela morte ou loucura.
Não sucede o mesmo consigo? Nunca teve vontade de se vomitar
a si própria?
(...)
Não, a sério, a felicidade, esse estado difuso resultante da
impossível convergência de paralelas de uma digestão sem azia com o egoísmo
satisfeito e sem remorsos, continua a parecer-me, a mim, que pertenço à
dolorosa classe dos inquietos tristes, eternamente à espera de uma explosão ou
de um milagre, qualquer coisa de tão abstracto e estranho como a inocência, a
justiça, a honra, conceitos grandiloquentes, profundos, e afinal vazios que a
família, a escola, a catequese e o Estado me haviam solenemente impingido para
melhor me domarem, para extinguirem, se assim me posso exprimir, no ovo, os
meus desejos e protestos de revolta.
(…)
Em Mangando e Marimbanguengo, vi a miséria e a maldade da
guerra, a inutilidade da guerra nos olhos de pássaros feridos dos militares, no
seu desencorajamento e no seu abandono, o alferes em calções espojado pela
mesa, cães vadios a lamberem restos na parada, a bandeira pendente do seu
mastro idêntica a um pénis sem força, vi homens de vinte anos sentados à
sombra, em silêncio, como os velhos nos parques, e disse ao furriel enfermeiro,
que desinfectava o joelho com tintura, É impossível que um dia destes não
tenhamos para aqui uma merdósia qualquer, porque, sabe como é, quando homens de
vintes anos se sentam assim à sombra, num tão completo desamparo, algo de
inesperado, e estranho, e trágico acontece sempre, até que me vieram informar
do rádio Um tipo deu um tiro em Mangando, e eu corri para o carro onde a
escolta me aguardava a aprontar-se ainda, e seguimos aos saltos para o norte
pela picada que a chuva destruíra.
Aos poucos e poucos, como se imagens de objectos de que nos
aproximamos no meio de um nevoeiro espesso e pesado se tratassem, começamos a vislumbrar
detalhes daquilo que não muito mais tarde, em futuros romances, viria a ser uma das
marcas-referência no estilo de António Lobo Antunes: parágrafos
intermináveis onde não há um ponto final senão ao fim de algumas páginas, e uma sucessão algo caótica de frases e palavras que se lêem como se de pensamentos e memórias nossos se tratassem. Por
enquanto, e porque esta é apenas uma segunda obra, e na primeira
ainda não havia destas coisas, tal abordagem estilística extremada é empregue muito ao de leve, dir-se-ia que experimentalmente, timidamente, as palavras
ainda aparecem organizadas segundo uma sintaxe perceptível, e encontramos apenas
alguns destes trechos escondidos no meio de tudo o resto (leia-se, o resto do
romance), sendo que neste caso tudo o resto, mesmo assim, já se nos apresenta
como estando nos limites das regras gramaticais da escrita de português, e que funcionam aqui quase como uma mordaça que não aguenta por muito mais tempo até ceder, sob pressão, ao rugido do autor.
Escute. Olhe para mim e escute, preciso tanto que me escute,
me escute com a mesma atenção ansiosa com que nós ouvíamos os apelos do rádio
da coluna debaixo de fogo, a voz do cabo de transmissões que chamava, que
pedia, voz perdida de náufrago esquecendo-se da segurança do código, o capitão
a subir à pressa para a Mercedes com meia dúzia de voluntários e a sair do arame
a derrapar na areia ao encontro da emboscada, escute-me tal como eu me debrucei
para o hálito do nosso primeiro morto na desesperada esperança de que
respirasse ainda, o morto que embrulhei num cobertor e coloquei no meu quarto,
era a seguir ao almoço e um torpor esquisito bambeava-me as pernas, fechei a
porta e declarei Dorme bem a sesta, cá fora os soldados olhavam para mim sem
dizer nada, Desta vez não há milagre meus chuchus, pensei eu, fitando-os, Está
a dormir a sesta, expliquei-lhes, está a dormir a sesta e não quero que o
acordem porque ele não quer acordar, e depois fui tratar dos feridos que se
torciam nos panos de tenda, nunca os eucaliptos de Ninda se me afiguraram tão
grandes como nessa tarde, grandes, negros, altos, verticais, assustadores, o
enfermeiro que me ajudava repetia Caralho caralho caralho com pronúncia do
Norte, viemos de todos os pontos do nosso país amordaçado para morrer em Ninda,
do nosso triste país de terra e mar para morrer em Ninda, Caralho caralho
caralho repetia eu com o enfermeiro com o meu sotaque educado de Lisboa, o
capitão apeou-se na Mercedes num cansaço infinito, segurava a arma à laia de
uma cana de pesca inútil, o povo da sanzala espreitava receoso lá de baixo,
escute-me como eu escutava o rápido latir aflito do meu sangue nas têmporas, o
meu sangue intacto nas têmporas, pelos buracos da varanda via o capitão a
passear de um lado para o outro apertando o viático de um copo de uísque contra
o peito, falando sozinho, cada um conversava sozinho porque ninguém conseguia
conversar com ninguém, o meu sangue no copo do capitão, tomai e bebei ó União
Nacional, o corpo do morto crescia no quarto até rebentar as paredes, alastrar
pela areia, alcançar a mata em busca do eco do tiro que o tocou, o helicóptero
transportou-o para Gago Coutinho como quem varre lixo vergonhoso para debaixo
de um tapete, morre-se mais nas estradas de Portugal do que na guerra de
África, baixas insignificantes e adeus até ao meu regresso, o furriel arrumou
os instrumentos cirúrgicos na caixa cromada, os canivetes, as pinças, os
porta-agulhas, as sondas, sentou-se ao meu lado nos degraus do posto de
socorro, espécie de vivenda pequenina para férias dos reformados melancólicos,
mordomos idosos, governantas virgens, os eucaliptos de Ninda não cessavam de
aumentar, estamos os dois aqui sentados como eu e ele nesses tempo, Abril de
71, a dez mil quilómetros da minha cidade, da minha mulher grávida, dos meus
irmãos de olhos azuis cujas cartas afectuosas se me enrolavam nas tripas em
espirais de ternura, Foda-se, disse o furriel que limpava as botas com os
dedos, Pois é, disse eu, e acho que até agora nunca tive um diálogo tão
comprido com quem quer que fosse.
Adore-se ou deteste-se, e porque, tal como a guerra, é um
livro feito de excessos e absurdos, quem o lê não o esquece tão depressa.
Revelava-se e afirmava-se um Autor maior nesse ano de 1979.