* - Elefante! Elefante!
As Minas de Salomão, romance de aventuras em terras de África, obra imensamente popular publicada por Henry Rider Haggard em 1885 (no original: King Solomon's Mines), originou o género "mundo perdido" dentro da literatura, e foi traduzida para português por Eça de Queirós. O trabalho surpreendente que daí resultou vai, contudo, muito para além de uma simples e competente tradução - é possível escutar a voz de autor inconfundível de Eça por todos os cantos do texto. É uma obra a ser disponibilizada brevemente, em formato electrónico, pelo Projecto Adamastor.
Eis um excerto (texto original disponibilizado mais abaixo):
«José Silveira — ou antes o seu miserável esqueleto, com todos os ossos rompendo para fora da pele, mais seca que pergaminho e amarela como gema de ovos. Os olhos saltavam-lhe da cara, à maneira de dois bugalhos de sangue. E o cabelo que eu lhe vira grisalho, vinha branco, todo branco como uma bela estriga de linho.
— Água! gemeu ele. Água, pelas cinco chagas de Cristo!
O infeliz tinha os beiços horrivelmente estalados, e entre eles a língua pendia-lhe, toda inchada e toda negra!
— Água! gemeu ele. Água, pelas cinco chagas de Cristo!
O infeliz tinha os beiços horrivelmente estalados, e entre eles a língua pendia-lhe, toda inchada e toda negra!
Dei-lhe água com leite, de que bebeu talvez dois quartilhos, a grandes sorvos, e sem parar. Foi necessário arrancar-lhe a vasilha. Depois caiu de costas, rompeu a delirar. Ora gemia, ora gritava. E era sempre sobre as serras de Suliman, os diamantes e o deserto! Levei-o para dentro da tenda: e, com o pouco que tinha, fiz o pouco que podia. O homem estava perdido. Rente da meia-noite sossegou. Eu, esfalfado, adormeci. Acordei de madrugada; e, ao primeiro alvor da luz, dou com ele (forma sinistra!) de joelhos, à porta da barraca, de olhos cravados para o longe, para o deserto! Nesse instante, um raio de sol que nascia frechou através do vasto descampado, e foi bater ao fundo, a cem milhas de nós, o pico mais alto das serras de Suliman. O homem soltou um grito, atirou desesperadamente para diante os dois braços de esqueleto:
— Lá estão elas, Santo Deus, lá estão elas!... E dizer que não pude lá chegar! Parecem tão perto! Logo ali, uns passos mais... E agora acabou-se, estou perdido, ninguém mais pode lá ir!
De repente emudeceu. Depois virou para mim, muito devagar, a face lívida e como esgazeada por uma ideia brusca.
— Ó camarada, onde está você?... Já o não distingo, vai-me a fugir a vista!
— Estou aqui; sossegue, homem.
— Tenho tempo para sossegar, tenho toda a eternidade! Escute. Eu estou a morrer. Você tem sido bom comigo, camarada... E para que havia eu de levar o segredo para debaixo da terra? Ao menos alguém se aproveita! Talvez você lá possa chegar, se conseguir atravessar esse deserto que matou o meu pobre criado, que me está a matar a mim...
Começou então a procurar tremulamente dentro do peito da camisa. Tirou por fim uma espécie de bolsa de tabaco, já velha, apertada com uma correia. Estava tão fraco que as suas pobres mãos nem puderam desfazer o nó. Fez-me um gesto, um gesto exausto, para que eu o desatasse. Dentro havia um farrapo de linho amarelado, com linhas escritas, num tom antiquíssimo, de cor de ferrugem. E dentro do farrapo estava um papel dobrado.
— O papel, murmurou ele numa voz que se extinguia, é a cópia do que está escrito no trapo. Levou-me anos a decifrar, a entender... Foi um antepassado meu, um dos primeiros portugueses que vieram a Lourenço Marques, que escreveu isso, quando estava para morrer acolá naquelas serras. Chamava-se D. José da Silveira, e já lá vão trezentos anos... Um escravo que ia com ele, e que ficara a esperar, do lado de cá do monte, vendo que o amo não voltava procurou-o, foi dar com ele morto, e trouxe para Lourenço Marques o bocado de linho que tinha letras. Desde então ficou guardado na nossa família. Há trezentos anos! E ninguém pensou em o decifrar até que eu me meti nisso... Custou-me a vida. Mas talvez outro consiga. Talvez outro chegue lá, às malditas serras! Será então o homem mais rico deste mundo! O mais rico, o mais rico! Tente você, camarada... Não dê o papel a ninguém! Vá você!
As últimas palavras saíram como um débil sopro. Caiu de costas, recomeçou a delirar. Daí a uma hora tudo acabou, Deus tenha a sua alma em descanso! Morreu serenamente, sem esforço e sem dor. Por minhas mãos o enterrei, bem fundo na terra, com fortes pedregulhos por cima do peito. Ao menos assim não darão com ele os chacais.»
— Lá estão elas, Santo Deus, lá estão elas!... E dizer que não pude lá chegar! Parecem tão perto! Logo ali, uns passos mais... E agora acabou-se, estou perdido, ninguém mais pode lá ir!
De repente emudeceu. Depois virou para mim, muito devagar, a face lívida e como esgazeada por uma ideia brusca.
— Ó camarada, onde está você?... Já o não distingo, vai-me a fugir a vista!
— Estou aqui; sossegue, homem.
— Tenho tempo para sossegar, tenho toda a eternidade! Escute. Eu estou a morrer. Você tem sido bom comigo, camarada... E para que havia eu de levar o segredo para debaixo da terra? Ao menos alguém se aproveita! Talvez você lá possa chegar, se conseguir atravessar esse deserto que matou o meu pobre criado, que me está a matar a mim...
Começou então a procurar tremulamente dentro do peito da camisa. Tirou por fim uma espécie de bolsa de tabaco, já velha, apertada com uma correia. Estava tão fraco que as suas pobres mãos nem puderam desfazer o nó. Fez-me um gesto, um gesto exausto, para que eu o desatasse. Dentro havia um farrapo de linho amarelado, com linhas escritas, num tom antiquíssimo, de cor de ferrugem. E dentro do farrapo estava um papel dobrado.
— O papel, murmurou ele numa voz que se extinguia, é a cópia do que está escrito no trapo. Levou-me anos a decifrar, a entender... Foi um antepassado meu, um dos primeiros portugueses que vieram a Lourenço Marques, que escreveu isso, quando estava para morrer acolá naquelas serras. Chamava-se D. José da Silveira, e já lá vão trezentos anos... Um escravo que ia com ele, e que ficara a esperar, do lado de cá do monte, vendo que o amo não voltava procurou-o, foi dar com ele morto, e trouxe para Lourenço Marques o bocado de linho que tinha letras. Desde então ficou guardado na nossa família. Há trezentos anos! E ninguém pensou em o decifrar até que eu me meti nisso... Custou-me a vida. Mas talvez outro consiga. Talvez outro chegue lá, às malditas serras! Será então o homem mais rico deste mundo! O mais rico, o mais rico! Tente você, camarada... Não dê o papel a ninguém! Vá você!
As últimas palavras saíram como um débil sopro. Caiu de costas, recomeçou a delirar. Daí a uma hora tudo acabou, Deus tenha a sua alma em descanso! Morreu serenamente, sem esforço e sem dor. Por minhas mãos o enterrei, bem fundo na terra, com fortes pedregulhos por cima do peito. Ao menos assim não darão com ele os chacais.»
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«"Yes, José Silvestre, or rather his skeleton and a little skin. His face was a bright yellow with bilious fever, and his large dark eyes stood nearly out of his head, for all the flesh had gone. There was nothing but yellow parchment-like skin, white hair, and the gaunt bones sticking up beneath.
"'Water! for the sake of Christ, water!' he moaned and I saw that his lips were cracked, and his tongue, which protruded between them, was swollen and blackish.
"I gave him water with a little milk in it, and he drank it in great gulps, two quarts or so, without stopping. I would not let him have any more. Then the fever took him again, and he fell down and began to rave about Suliman's Mountains, and the diamonds, and the desert. I carried him into the tent and did what I could for him, which was little enough; but I saw how it must end. About eleven o'clock he grew quieter, and I lay down for a little rest and went to sleep. At dawn I woke again, and in the half light saw Silvestre sitting up, a strange, gaunt form, and gazing out towards the desert. Presently the first ray of the sun shot right across the wide plain before us till it reached the faraway crest of one of the tallest of the Suliman Mountains more than a hundred miles away.
"'There it is!' cried the dying man in Portuguese, and pointing with his long, thin arm, 'but I shall never reach it, never. No one will ever reach it!'
"Suddenly, he paused, and seemed to take a resolution. 'Friend,' he said, turning towards me, 'are you there? My eyes grow dark.'
"'Yes,' I said; 'yes, lie down now, and rest.'
"'Ay,' he answered, 'I shall rest soon, I have time to rest—all eternity. Listen, I am dying! You have been good to me. I will give you the writing. Perhaps you will get there if you can live to pass the desert, which has killed my poor servant and me.'
"Then he groped in his shirt and brought out what I thought was a Boer tobacco pouch made of the skin of the Swart-vet-pens or sable antelope. It was fastened with a little strip of hide, what we call a rimpi, and this he tried to loose, but could not. He handed it to me. 'Untie it,' he said. I did so, and extracted a bit of torn yellow linen on which something was written in rusty letters. Inside this rag was a paper.
"Then he went on feebly, for he was growing weak: 'The paper has all that is on the linen. It took me years to read. Listen: my ancestor, a political refugee from Lisbon, and one of the first Portuguese who landed on these shores, wrote that when he was dying on those mountains which no white foot ever pressed before or since. His name was José da Silvestra, and he lived three hundred years ago. His slave, who waited for him on this side of the mountains, found him dead, and brought the writing home to Delagoa. It has been in the family ever since, but none have cared to read it, till at last I did. And I have lost my life over it, but another may succeed, and become the richest man in the world—the richest man in the world. Only give it to no one, senor; go yourself!'
"Then he began to wander again, and in an hour it was all over.
"God rest him! he died very quietly, and I buried him deep, with big boulders on his breast; so I do not think that the jackals can have dug him up. And then I came away."»
"'Water! for the sake of Christ, water!' he moaned and I saw that his lips were cracked, and his tongue, which protruded between them, was swollen and blackish.
"I gave him water with a little milk in it, and he drank it in great gulps, two quarts or so, without stopping. I would not let him have any more. Then the fever took him again, and he fell down and began to rave about Suliman's Mountains, and the diamonds, and the desert. I carried him into the tent and did what I could for him, which was little enough; but I saw how it must end. About eleven o'clock he grew quieter, and I lay down for a little rest and went to sleep. At dawn I woke again, and in the half light saw Silvestre sitting up, a strange, gaunt form, and gazing out towards the desert. Presently the first ray of the sun shot right across the wide plain before us till it reached the faraway crest of one of the tallest of the Suliman Mountains more than a hundred miles away.
"'There it is!' cried the dying man in Portuguese, and pointing with his long, thin arm, 'but I shall never reach it, never. No one will ever reach it!'
"Suddenly, he paused, and seemed to take a resolution. 'Friend,' he said, turning towards me, 'are you there? My eyes grow dark.'
"'Yes,' I said; 'yes, lie down now, and rest.'
"'Ay,' he answered, 'I shall rest soon, I have time to rest—all eternity. Listen, I am dying! You have been good to me. I will give you the writing. Perhaps you will get there if you can live to pass the desert, which has killed my poor servant and me.'
"Then he groped in his shirt and brought out what I thought was a Boer tobacco pouch made of the skin of the Swart-vet-pens or sable antelope. It was fastened with a little strip of hide, what we call a rimpi, and this he tried to loose, but could not. He handed it to me. 'Untie it,' he said. I did so, and extracted a bit of torn yellow linen on which something was written in rusty letters. Inside this rag was a paper.
"Then he went on feebly, for he was growing weak: 'The paper has all that is on the linen. It took me years to read. Listen: my ancestor, a political refugee from Lisbon, and one of the first Portuguese who landed on these shores, wrote that when he was dying on those mountains which no white foot ever pressed before or since. His name was José da Silvestra, and he lived three hundred years ago. His slave, who waited for him on this side of the mountains, found him dead, and brought the writing home to Delagoa. It has been in the family ever since, but none have cared to read it, till at last I did. And I have lost my life over it, but another may succeed, and become the richest man in the world—the richest man in the world. Only give it to no one, senor; go yourself!'
"Then he began to wander again, and in an hour it was all over.
"God rest him! he died very quietly, and I buried him deep, with big boulders on his breast; so I do not think that the jackals can have dug him up. And then I came away."»
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