A primeira obra que li de José Cardoso Pires, e aquela que ainda
hoje mais estimo, foi a Balada da Praia dos Cães (Dissertação sobre um crime)
– um título que já conhecia de há muito, de momento incerto no tempo, por ter
visto na televisão o anúncio de que ia passar o filme - algures na segunda metade
do anos oitenta, RTP2, quando a transmissão por cabo e a Internet não passavam
de sonhos futuristas, apenas ao alcance dos visionários da Ficção Científica. O
título, nessa altura, juntamente com algumas imagens da dita adaptação,
ficou-me gravado na memória. Não sabia quem era José Cardoso Pires, mas
aquele título! – aquele título era (é!) um dos mais belos que já ouvira
atribuídos a um filme/livro. Balada da Praia dos Cães, que mistérios ocultos
encerraria tão melódica e inspirada escolha? O enredo, a julgar pelas imagens,
teria qualquer coisa a ver com um crime passional, e à cabeça do elenco Raúl
Solnado, num papel “sério”, a interpretar o inspector da “Judite” que o investiga
(no livro, sobre a personagem: “… Elias Santana, chefe de brigada. Indivíduo de
fraca compleição física, palidez acentuada, 1 metro e 73 de altura; olhos
salientes (exoftálmicos) denotando um avançado estado de miopia, cor de pele e
outros sinais reveladores de perturbações digestivas, provavelmente gastrite
crónica.”). Acabei por perder o filme dessa vez.
Muito anos depois li o romance – e aí fiquei rendido ao
génio de Cardoso Pires, àquilo que pode ser descrito como a sua criatividade
literária, à sedução estilística que emana da sua prosa, à imagem
realista, desenganada e decadente que apresenta sobre a moral e os costumes
sociais – tão enraizados na nossa cultura, tão portugueses. Era de uma
investigação policial que se tratava de facto, mas tal investigação, servindo
enfim de fio condutor à narrativa, era o que menos interessava na leitura. Pano
de fundo: o retrato de uma nação vergada pela ditadura e pela opressão
criminosa do regime – e dentro dela, através das recriações “sonhadas” pela
mente do Elias, o “Covas”, a minúcia do comportamento humano revelando-se aos
poucos, como sucede com o negativo de uma fotografia, até surgir a imagem humana
em todo o seu esplendor, finalmente nítida e colorida. Recriar – no sentido não
só de perceber como ocorreu (o crime), mas no sentido de revelar quem são – o
que são - as pessoas envolvidas. Revelem-se as pessoas e mais os seus
comportamentos que os factos e motivos surgem naturalmente, por dedução. Em frente a
“Covas”, uma mulher, Mena, o apêndice de onde vai partir um dos vértices da
investigação, mas também o corpo misterioso e infinitamente sedutor onde
o inspector vai encontrar o estímulo perfeito para outro tipo de fantasias.
Balada da Praia dos Cães, publicado em 1982, é um romance
ficcional baseado em factos reais ocorridos em 1960 - “…tragédia que tinha
perturbado profundamente a opinião pública do país.” Escreve ainda José Cardoso
Pires em nota final: “... entre o facto e a ficção há aproximações e distanciamentos
a cada passo, e tudo se pretende num paralelismo autónomo e numa confluência
conflituosa, numa verdade e numa dúvida que não são pura coincidência.“ Estamos
bastante longe da ficção-entretém inconsequente de Conan Doyle ou Agatha
Christie, por exemplo, por mais aprazível que esta possa ser, não só pelo
alcance político e social da obra de Cardoso Pires, esse mergulho profundo na
história do nosso país, como pela desenvoltura estilística do autor, que o
coloca num patamar artístico a que esses outros não chegam, nem que lhes pusessem um escadote à frente.
Transcrevo abaixo o portentoso início do romance – coisa única
e inesquecível, que revela, entre outras, uma das marcas reconhecíveis do
autor: as suaves transições narrativas no espaço e no tempo. Veja-se como a
partir de um frio e “matemático” relatório de autópsia/ocorrência Cardoso
Pires transpõe o enredo para os domínios da ficção, e como, a partir desse momento, organiza as palavras para recriar acontecimentos com um apurado sentido
visual, um domínio absoluto da linguagem, e uma riqueza estilística
invulgar – terreno onde a arte se eleva
acima do facto descrito. Com algum humor pelo meio.
«
CADÁVER DE UM DESCONHECIDO
encontrado na praia do mastro em 3-4-1960
1. Indivíduo do sexo masculino, 1.72 m de altura,
bom estado de nutrição, idade provável cinquenta anos ----
2. não aparenta rigidez cadavérica; não tem livores
---
3. na calote craniana, ao nível da sutura dta. occipito-parietal,
há uma perfuração circular de 4 mm de diâmetro provocada por projéctil ---
4.
perfuração do temporal esq., na tábua interna
---
5. ruptura da dura-mater ao nível dos orifícios
descritos nos ossos ---
6. a órbita esq. apresenta uma fractura esquirilosa
com perda de substância óssea numa área circular de 4 mm de diâmetro, à qual se
segue um trajecto que se dirige para o lado direito do paladar duro ---
7.
encéfalo em putrefação adiantada, com o aspecto
de uma massa verde-cinzenta, fétida ---
8.
perfuração do 3º espaço intercostal com
infiltração hemorrágica do músculo circunvizinho ---
9.
perfuração do saco pericárdico ---
10.
perfuração do esófago ---
11.
coração: 4 perfurações interessando
sucessivamente a aurícula esq., apêndice auricular esq., artéria pulmonar e
base do ventrículo, pesa 300g, em avançado estado de putrefacção ---
12.
perfuração da 7.ª vértebra dorsal num orifício
de 4 mm de diâmetro que é início de um trajecto que se prolonga até ao canal
raquidiano onde se encontra alojada uma bala de arma de fogo ---
13.
outro projéctil na região muscular do cotovelo
esq. ---
14.
bala de arma de fogo alojada no estômago, com
depósito de abundante massa sanguínea ---
15.
ausência de sinais de homossexualidade activa ou
passiva
Ap. Exame “in situ”: Areal acidentado de
pequenas dunas, numa das quais, a cerca de 100 m da estrada se viam a
descoberto um cotovelo e um joelho cujos tecidos se apresentavam parcialmente
destruídos ---
--- e cobertos de moscas. Removida a areia
com os cuidados necessários,
encontrou-se o corpo de um indivíduo do sexo masculino deitado na
posição de decúbito lateral esquerdo em adiantado estado de decomposição. Calçava
sapatos trocados, isto é, o pé direito no esquerdo e o do esquerdo no direito,
e meias de lã em bom uso. Cronómetro de pulso marca Tissot MM parado nas 05.27.41 horas. Não
foram encontrados documentos, haveres, ou quaisquer referências pessoais. Nas
regiões a descoberto algumas peças de vestuário apresentavam-se rasgadas pelos
cães ---
---------------------- um dos quais, cão de fora e jamais identificado, foi
aquele que chamou a atenção dum pescador local e o levou à descoberta do
cadáver. Este cão parece que tinha sobrancelhas amarelas, que é coisa de
rafeiro lusitano. Provavelmente andava à divina pela costa e como tal deve ter
pernoitado na zona dos banhistas que nesta época do ano se resume a algumas
armações de ferro e pavilhões a hibernar. Pelo terreno encontravam-se restos de
férias, farrapos de jornais soterrados no areal, um sapato naufragado,
embalagens perdidas; a boia de socorros a náufragos sempre à vista, dia e
noite; refugos de marés vivas; o conhecido cartaz PORTUGAL, Europe’s Best Kept
Secret, FLY TAP crucificado num poste solitário. Foi neste verão fantasma que o
cachorro em viagem se veio acolher.
Ao alvorecer seguiu jornada rumo ao norte, precisamente na
direcção mais deserta, o que não se compreende tratando-se dum animal aos
sobejos, a menos que algum fio de cheiro urgente o tivesse chamado de longe; e
assim deve ter sido porque quando passou pelo pescador ia a trote direito e de
focinho baixo a murmurar. Levava destino, isso se via. Logo adiante apressou o
passo, entrou em corrida e desapareceu nas dunas.
Porém não tardou a aparecer, desta vez esgalgado no cume das
areias a uivar para os fumos que vinham do oceano. Isto, bem entendido,
intrigou o pescador que pelo sim pelo não se dirigiu às arribas, sem que o
animal interrompesse um só instante o seu apelo ou o olhasse sequer. E o
pescador subindo sempre foi-se chegando a ele e já muito próximo parou e viu:
Viu no fundo duma cova uma conspiração de cães à volta do
cadáver dum homem; alguns saltaram para o lado assim que ele apareceu mas logo
retomaram a presa; outros nem isso, estavam tão apostados na sua tarefa que se
abocanhavam entre eles por cima do corpo do morto.
Há aqui uma certa ironia, diz o inspector Otero da Polícia
Judiciária. Segundo consta, a vítima gostava desvairadamente de cães.»
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