Há uma pergunta que fica teimosamente a pairar no ar quando terminamos de ver Nine - Nove (Rob Marshall - 2009): como foi que isto sucedeu? Como foi possível que um filme produzido por uma equipa competente e experiente, na posse de avultados meios financeiros, conduzido por nomes sonantes nas vertentes técnica e artística, com um elenco de primeira água a transbordar de estrelas consagradas - que, além disso, não poderiam ter sido escolhidas de forma mais apropriada para cada papel -, e que homenageia energicamente, com algum "barulho" e aparato pelo meio, essa obra maior de Federico Fellini, 8½ (1963), seguindo-lhe as passadas narrativas e recriando algumas sequências famosas, tivesse falhado tão redondamente, tão frustrantemente, nos seus propósitos?
Mais, não podemos sequer afirmar que se trata de um mau filme, porque a tal competência e aprumo artísticos, levados ao extremo do profissionalismo pelos nomes envolvidos, se notam em cada fotograma, em cada coreografia encenada, e cada sopro interpretativo. Mas talvez que as suas forças intrínsecas sejam também as causas maiores do seu fracasso - ou ruína - a começar na ideia de homenagear 8½, uma obra que reconhecidamente não estará ao alcance de qualquer tentativa de abordagem - nem essa perspectiva de sucesso tem nada que ver com a largueza dos meios de produção. Recordemos o caso de Stardust Memories - Recordações (Woody Allen - 1980), por exemplo, que lidava com esta situação sobrepondo a persona Allen à persona Fellini, não deixando de aproveitar o território comum que há entre as duas, e que, à conta dos trejeitos idiossincráticos do autor norte-americano, e mais da sua identidade autoral distinta, "se safava" com a dita homage. Havia pois uma identidade suficientemente forte e autónoma que, sem cuspir no prato de onde comia, reclamava a si o protagonismo. Em Nine, os problemas começam por aí- é uma fita anónima, mesmo que artisticamente esforçada, sem a identidade necessária para lhe insuflar a alma, e consequentemente sem sustento para preencher as carcaças das personagens com algo que se assemelhe a vida.
Curiosamente, refira-se, Nine serve-se de algumas ideias provindas de Stardust Memories para compor o ramalhete (a conversa entre o realizador e a plateia logo no início do filme, por exemplo, e o nudge aos "good early movies", são reminiscências da obra de Allen, e não da de Fellini). Será porventura esse o maior mérito de Nine, contudo - o de não pretender imitar ou refazer a obra que reverencia de forma demasiado próxima, limitando-se a aproveitar a estrutura e as personagens, mas à distância, com outro tipo de abordagem estética e artística, compreendendo que há um limite que não deve transpor (andam por lá os paparazzos, mas é um alívio não terem enfiado com Nicole Kidman dentro da fonte, a fingir-se de Anita Ekberg em La Dolce Vita). Entende-se o que Marshall pretendeu fazer estruturalmente: pegar nas sequências que no filme de Fellini nos surgem como oníricas (as da imaginação, dos sonhos, fantasias, e das recordações de Guido/Marcello Mastroianni) e substituí-las por momentos musicais "sonhados" (passados na imaginação de Daniel Day-Lewis), com coreografias vistosas, semi-eróticas, mais ou menos modernas - um pouco ao jeito do que sucedia em Chicago (Marshall - 2002). A ideia era meritória, mas não lhe serviu para tornar Nine num filme estimulante - pelo contrário, apesar do aparato e do nervo que exibe, o resultado é confrangedoramente estéril do ponto de vista da empatia pelas emoções humanas (não por culpa dos actores), e até algo aborrecido do ponto de vista narrativo, não se afastando por uma vez da linha do politicamente correcto e do previsível, e matando logo por aí o almejo de alcançar Fellini, ainda que de longe (ao caos imensamente sugestivo e criativo de um, sucede a ordem certinha e arrumadinha do outro, e também sucede que isso não é bom). É a simples curiosidade - e apenas essa - que nos prende ao ecrã: para ver como tudo se vai frustrando, quebrando e desmoronando pelo caminho - o caminho para um 8½ cada vez mais distante.
Mais, não podemos sequer afirmar que se trata de um mau filme, porque a tal competência e aprumo artísticos, levados ao extremo do profissionalismo pelos nomes envolvidos, se notam em cada fotograma, em cada coreografia encenada, e cada sopro interpretativo. Mas talvez que as suas forças intrínsecas sejam também as causas maiores do seu fracasso - ou ruína - a começar na ideia de homenagear 8½, uma obra que reconhecidamente não estará ao alcance de qualquer tentativa de abordagem - nem essa perspectiva de sucesso tem nada que ver com a largueza dos meios de produção. Recordemos o caso de Stardust Memories - Recordações (Woody Allen - 1980), por exemplo, que lidava com esta situação sobrepondo a persona Allen à persona Fellini, não deixando de aproveitar o território comum que há entre as duas, e que, à conta dos trejeitos idiossincráticos do autor norte-americano, e mais da sua identidade autoral distinta, "se safava" com a dita homage. Havia pois uma identidade suficientemente forte e autónoma que, sem cuspir no prato de onde comia, reclamava a si o protagonismo. Em Nine, os problemas começam por aí- é uma fita anónima, mesmo que artisticamente esforçada, sem a identidade necessária para lhe insuflar a alma, e consequentemente sem sustento para preencher as carcaças das personagens com algo que se assemelhe a vida.
Woody Allen parodia a espantosa sequência de abertura de 8½ em Stardust Memories
Curiosamente, refira-se, Nine serve-se de algumas ideias provindas de Stardust Memories para compor o ramalhete (a conversa entre o realizador e a plateia logo no início do filme, por exemplo, e o nudge aos "good early movies", são reminiscências da obra de Allen, e não da de Fellini). Será porventura esse o maior mérito de Nine, contudo - o de não pretender imitar ou refazer a obra que reverencia de forma demasiado próxima, limitando-se a aproveitar a estrutura e as personagens, mas à distância, com outro tipo de abordagem estética e artística, compreendendo que há um limite que não deve transpor (andam por lá os paparazzos, mas é um alívio não terem enfiado com Nicole Kidman dentro da fonte, a fingir-se de Anita Ekberg em La Dolce Vita). Entende-se o que Marshall pretendeu fazer estruturalmente: pegar nas sequências que no filme de Fellini nos surgem como oníricas (as da imaginação, dos sonhos, fantasias, e das recordações de Guido/Marcello Mastroianni) e substituí-las por momentos musicais "sonhados" (passados na imaginação de Daniel Day-Lewis), com coreografias vistosas, semi-eróticas, mais ou menos modernas - um pouco ao jeito do que sucedia em Chicago (Marshall - 2002). A ideia era meritória, mas não lhe serviu para tornar Nine num filme estimulante - pelo contrário, apesar do aparato e do nervo que exibe, o resultado é confrangedoramente estéril do ponto de vista da empatia pelas emoções humanas (não por culpa dos actores), e até algo aborrecido do ponto de vista narrativo, não se afastando por uma vez da linha do politicamente correcto e do previsível, e matando logo por aí o almejo de alcançar Fellini, ainda que de longe (ao caos imensamente sugestivo e criativo de um, sucede a ordem certinha e arrumadinha do outro, e também sucede que isso não é bom). É a simples curiosidade - e apenas essa - que nos prende ao ecrã: para ver como tudo se vai frustrando, quebrando e desmoronando pelo caminho - o caminho para um 8½ cada vez mais distante.
Daniel Day-Lewis em Nine
É conhecido o contexto profissional e emocional que levou Fellini a realizar 8½. Depois do estrondoso cume criativo que deu pelo nome de La Dolce Vita, circa 1960, o realizador encontrou-se, pela primeira vez na vida, face a um vazio de ideias, sem saber o que fazer a seguir. Junto da sua equipa habitual de argumentistas, escarrapachou uns traços vagos sobre um escritor, também ele em crise criativa, apanhado numa teia sentimentalista entre a esposa e a amante. O filme, segundo Fellini, devia ser encenado como uma "comédia". O projecto foi sendo sucessivamente adiado porque o realizador, ao mesmo tempo que sabia tratar-se de uma história profundamente autobiográfica, não se identificava com a personagem principal - por ser um escritor. Para piorar o cenário, Mastroianni, o actor escolhido para o papel, havia recentemente sido utilizado por Michelangelo Antonioni em La Notte (1960), precisamente interpretando um escritor. Foi só quando Fellini se decidiu a mudar a profissão do seu futuro alter-ego no ecrã - de escritor para realizador - dois anos mais tarde, que o projecto arrancou finalmente com a produção. O resto também é conhecido - a essência do filme é uma reprodução metafórica (até certo ponto), pontuada por momentos surreais e oníricos que exprimem a culpa, o isolamento e a inquietação, da crise criativa e das expectativas por cumprir por que Fellini estava a passar ("Eu não tenho nada para dizer, mas quero dizê-lo à mesma!"). O outro eixo temático mestre, que nesse se intercepta, aborda a relação antagónica entre a Verdade e a Felicidade, tendo pelo meio a "problemática" da Sinceridade e a hipocrisia dos costumes sociais, e fazendo das relações amorosas e do "ideal feminino" o nervo ferido à beira do ponto de ruptura - ou já para lá dele. Filmado num preto-e-branco fortemente contrastado, o filme é uma delirante e insana viagem ao confins de Honestidade, em que deixam de importar as barreiras em relação à mensagem que se pretende transmitir, e que consegue, pela via artística, desenvencilhar o nó górdio paradoxal contido na sua premissa: "a felicidade é poder dizer a verdade sem magoar ninguém", lança Guido para o ar, em frente a uma plateia de mulheres, todas as mulheres por quem se terá sentido atraído ao longo da vida (a música? "A Cavalgada das Valquírias", muito antes de Coppola a ter enfeitado com helicópteros). Terá Fellini conseguido não magoar ninguém ao expor-se desta forma no celuloide?
Marcello Mastroianni em 8½
Ora, o filme de Marshall, seguindo o estreito plano da boa intenção e da correcção estética, sem novidade nem identidade, em vez de somar, subtrai, deixando pelo caminho o desvairo alucinado e claustrofóbico que Guido mantinha oculto dentro de si na obra de Fellini. Se a personagem que Day-Lewis interpreta se equivale à de Mastroianni - pelo menos de forma tentada -, o acondicionamento artístico de Nine dita que não haja desta vez uma saída possível para a imensa habilidade e versatilidade do actor - o abismo não olha de volta para a personagem de Nine como olhava para a de 8½ - com uma voragem caricatural insaciável, por vezes grotesca, por vezes amarga, por vezes nostálgica pela recordação, por vezes ensimesmada, divertida com as tropelias da sua imaginação (veja-se a sequência do enforcamento do crítico de cinema) - algo que em Nine não passa de uma miragem distante - uma vaga memória que não encontra eco na matriz onde se inspira.
Sem comentários:
Enviar um comentário