Lágrimas de crocodilo - Marlon Brando como Stanley Kowalski, num dos muitos momentos de génio em A Streetcar Named Desire - Um Eléctrico Chamado Desejo, a peça de Tennessen Williams adaptada ao cinema por Elia Kazan, em 1951. E Stella descerá então até ele, transfixa, para arrefecer a chama libidinosa que arde em ambos ...
Apontamentos dispersos sobre Cinema, Literatura, Fotografia, Música e tudo o que de alguma forma possa estar relacionado com Arte e Cultura.
18/02/14
16/02/14
A Balada de Cardoso Pires
A primeira obra que li de José Cardoso Pires, e aquela que ainda
hoje mais estimo, foi a Balada da Praia dos Cães (Dissertação sobre um crime)
– um título que já conhecia de há muito, de momento incerto no tempo, por ter
visto na televisão o anúncio de que ia passar o filme - algures na segunda metade
do anos oitenta, RTP2, quando a transmissão por cabo e a Internet não passavam
de sonhos futuristas, apenas ao alcance dos visionários da Ficção Científica. O
título, nessa altura, juntamente com algumas imagens da dita adaptação,
ficou-me gravado na memória. Não sabia quem era José Cardoso Pires, mas
aquele título! – aquele título era (é!) um dos mais belos que já ouvira
atribuídos a um filme/livro. Balada da Praia dos Cães, que mistérios ocultos
encerraria tão melódica e inspirada escolha? O enredo, a julgar pelas imagens,
teria qualquer coisa a ver com um crime passional, e à cabeça do elenco Raúl
Solnado, num papel “sério”, a interpretar o inspector da “Judite” que o investiga
(no livro, sobre a personagem: “… Elias Santana, chefe de brigada. Indivíduo de
fraca compleição física, palidez acentuada, 1 metro e 73 de altura; olhos
salientes (exoftálmicos) denotando um avançado estado de miopia, cor de pele e
outros sinais reveladores de perturbações digestivas, provavelmente gastrite
crónica.”). Acabei por perder o filme dessa vez.
Muito anos depois li o romance – e aí fiquei rendido ao
génio de Cardoso Pires, àquilo que pode ser descrito como a sua criatividade
literária, à sedução estilística que emana da sua prosa, à imagem
realista, desenganada e decadente que apresenta sobre a moral e os costumes
sociais – tão enraizados na nossa cultura, tão portugueses. Era de uma
investigação policial que se tratava de facto, mas tal investigação, servindo
enfim de fio condutor à narrativa, era o que menos interessava na leitura. Pano
de fundo: o retrato de uma nação vergada pela ditadura e pela opressão
criminosa do regime – e dentro dela, através das recriações “sonhadas” pela
mente do Elias, o “Covas”, a minúcia do comportamento humano revelando-se aos
poucos, como sucede com o negativo de uma fotografia, até surgir a imagem humana
em todo o seu esplendor, finalmente nítida e colorida. Recriar – no sentido não
só de perceber como ocorreu (o crime), mas no sentido de revelar quem são – o
que são - as pessoas envolvidas. Revelem-se as pessoas e mais os seus
comportamentos que os factos e motivos surgem naturalmente, por dedução. Em frente a
“Covas”, uma mulher, Mena, o apêndice de onde vai partir um dos vértices da
investigação, mas também o corpo misterioso e infinitamente sedutor onde
o inspector vai encontrar o estímulo perfeito para outro tipo de fantasias.
Balada da Praia dos Cães, publicado em 1982, é um romance
ficcional baseado em factos reais ocorridos em 1960 - “…tragédia que tinha
perturbado profundamente a opinião pública do país.” Escreve ainda José Cardoso
Pires em nota final: “... entre o facto e a ficção há aproximações e distanciamentos
a cada passo, e tudo se pretende num paralelismo autónomo e numa confluência
conflituosa, numa verdade e numa dúvida que não são pura coincidência.“ Estamos
bastante longe da ficção-entretém inconsequente de Conan Doyle ou Agatha
Christie, por exemplo, por mais aprazível que esta possa ser, não só pelo
alcance político e social da obra de Cardoso Pires, esse mergulho profundo na
história do nosso país, como pela desenvoltura estilística do autor, que o
coloca num patamar artístico a que esses outros não chegam, nem que lhes pusessem um escadote à frente.
Transcrevo abaixo o portentoso início do romance – coisa única
e inesquecível, que revela, entre outras, uma das marcas reconhecíveis do
autor: as suaves transições narrativas no espaço e no tempo. Veja-se como a
partir de um frio e “matemático” relatório de autópsia/ocorrência Cardoso
Pires transpõe o enredo para os domínios da ficção, e como, a partir desse momento, organiza as palavras para recriar acontecimentos com um apurado sentido
visual, um domínio absoluto da linguagem, e uma riqueza estilística
invulgar – terreno onde a arte se eleva
acima do facto descrito. Com algum humor pelo meio.
«
CADÁVER DE UM DESCONHECIDO
encontrado na praia do mastro em 3-4-1960
1. Indivíduo do sexo masculino, 1.72 m de altura,
bom estado de nutrição, idade provável cinquenta anos ----
2. não aparenta rigidez cadavérica; não tem livores
---
3. na calote craniana, ao nível da sutura dta. occipito-parietal,
há uma perfuração circular de 4 mm de diâmetro provocada por projéctil ---
4.
perfuração do temporal esq., na tábua interna
---
5. ruptura da dura-mater ao nível dos orifícios
descritos nos ossos ---
6. a órbita esq. apresenta uma fractura esquirilosa
com perda de substância óssea numa área circular de 4 mm de diâmetro, à qual se
segue um trajecto que se dirige para o lado direito do paladar duro ---
7.
encéfalo em putrefação adiantada, com o aspecto
de uma massa verde-cinzenta, fétida ---
8.
perfuração do 3º espaço intercostal com
infiltração hemorrágica do músculo circunvizinho ---
9.
perfuração do saco pericárdico ---
10.
perfuração do esófago ---
11.
coração: 4 perfurações interessando
sucessivamente a aurícula esq., apêndice auricular esq., artéria pulmonar e
base do ventrículo, pesa 300g, em avançado estado de putrefacção ---
12.
perfuração da 7.ª vértebra dorsal num orifício
de 4 mm de diâmetro que é início de um trajecto que se prolonga até ao canal
raquidiano onde se encontra alojada uma bala de arma de fogo ---
13.
outro projéctil na região muscular do cotovelo
esq. ---
14.
bala de arma de fogo alojada no estômago, com
depósito de abundante massa sanguínea ---
15.
ausência de sinais de homossexualidade activa ou
passiva
Ap. Exame “in situ”: Areal acidentado de
pequenas dunas, numa das quais, a cerca de 100 m da estrada se viam a
descoberto um cotovelo e um joelho cujos tecidos se apresentavam parcialmente
destruídos ---
--- e cobertos de moscas. Removida a areia
com os cuidados necessários,
encontrou-se o corpo de um indivíduo do sexo masculino deitado na
posição de decúbito lateral esquerdo em adiantado estado de decomposição. Calçava
sapatos trocados, isto é, o pé direito no esquerdo e o do esquerdo no direito,
e meias de lã em bom uso. Cronómetro de pulso marca Tissot MM parado nas 05.27.41 horas. Não
foram encontrados documentos, haveres, ou quaisquer referências pessoais. Nas
regiões a descoberto algumas peças de vestuário apresentavam-se rasgadas pelos
cães ---
---------------------- um dos quais, cão de fora e jamais identificado, foi
aquele que chamou a atenção dum pescador local e o levou à descoberta do
cadáver. Este cão parece que tinha sobrancelhas amarelas, que é coisa de
rafeiro lusitano. Provavelmente andava à divina pela costa e como tal deve ter
pernoitado na zona dos banhistas que nesta época do ano se resume a algumas
armações de ferro e pavilhões a hibernar. Pelo terreno encontravam-se restos de
férias, farrapos de jornais soterrados no areal, um sapato naufragado,
embalagens perdidas; a boia de socorros a náufragos sempre à vista, dia e
noite; refugos de marés vivas; o conhecido cartaz PORTUGAL, Europe’s Best Kept
Secret, FLY TAP crucificado num poste solitário. Foi neste verão fantasma que o
cachorro em viagem se veio acolher.
Ao alvorecer seguiu jornada rumo ao norte, precisamente na
direcção mais deserta, o que não se compreende tratando-se dum animal aos
sobejos, a menos que algum fio de cheiro urgente o tivesse chamado de longe; e
assim deve ter sido porque quando passou pelo pescador ia a trote direito e de
focinho baixo a murmurar. Levava destino, isso se via. Logo adiante apressou o
passo, entrou em corrida e desapareceu nas dunas.
Porém não tardou a aparecer, desta vez esgalgado no cume das
areias a uivar para os fumos que vinham do oceano. Isto, bem entendido,
intrigou o pescador que pelo sim pelo não se dirigiu às arribas, sem que o
animal interrompesse um só instante o seu apelo ou o olhasse sequer. E o
pescador subindo sempre foi-se chegando a ele e já muito próximo parou e viu:
Viu no fundo duma cova uma conspiração de cães à volta do
cadáver dum homem; alguns saltaram para o lado assim que ele apareceu mas logo
retomaram a presa; outros nem isso, estavam tão apostados na sua tarefa que se
abocanhavam entre eles por cima do corpo do morto.
Há aqui uma certa ironia, diz o inspector Otero da Polícia
Judiciária. Segundo consta, a vítima gostava desvairadamente de cães.»
14/02/14
Love Story x 14
Alfred Hitchcock será para a eternidade recordado no cinema como o "grão-mestre da ordem do suspense", um cineasta - o maior e mais engenhoso que a Grã-Bretanha viu nascer - a quem interessou primeiramente a exploração dos mecanismos da inquietação/angústia, da falsa culpa, da dúvida e da incerteza em contextos de crime, bem como a necessidade de encontrar desfechos para esses mistérios, algo que ocorria tanto dentro da tela, com as personagens, como fora dela, junto dos espectadores. O Amor, não sendo um campo de trabalho a que se dedique em exclusivo (o romance não existe para Hitchcock apenas enquanto "história de amor", nem mesmo em casos como Vertigo, que aborda a obsessão exacerbada em torno de um ideal amoroso), desempenha ainda assim um papel crucial e determinante na maioria os seus filmes, ganhando, a espaços, tanta ou mais importância quanto as temáticas que o tornaram famoso. Não será despropositado afirmar que nestes casos as relações amorosas entre as personagens funcionam como coluna vertebral onde assenta o enredo - tais sentimentos atiram as personagens para comportamentos que de outra forma não sucederiam, matéria-prima por excelência para a fabricação de situações limite. A importância atribuída por Hitchcock ao Amor não pode de resto passar despercebida nos seus filmes - pelo contrário, é gritantemente óbvia e provocante, mesmo nas situações em que é a "sugestão" e o contorno freudiano a ditar as regras - quer pela utilização dinâmica da câmara, sempre "à espreita" para ensaiar close-ups ou planos e piruetas a explicitar a manifestação de gestos afectivos, quer pela "fisicalidade" que irradia dos actores, às vezes bastante libidinosa, quer ainda pelo jogo de gato-rato que o realizador foi mantendo fora da tela, ao longo do tempo, com a censura - é célebre "o beijo" de quase três minutos entre Cary Grant e Ingrid Bergman, em Notorious - Difamação (1946), que foi marotamente separado em dezenas de beijos mais curtos, intercalado com diálogos, prolongando-se enquanto os dois passeiam pelo cenário, para contornar o tempo limite de três segundos por beijo, imposto pelo Motion Picture Production Code, na altura em vigor.
Este dia S. Valentim serve de pretexto para recordar, um pouco ao jeito de Cinema Paraíso, 14 marcos na carreira de um realizador de excepção, para quem a palavra "inocência" foi sempre uma falsidade a denunciar.
Rebecca - 1940 - Laurence Olivier & Joan Fontaine
Suspicion - Suspeita - 1941 - Joan Fontaine & Cary Grant
Spellbound - A Casa Encantada - 1945 - Gregory Peck & Ingrid Bergman
Notorious - Difamação - 1946 - Cary Grant & Ingrid Bergman
Strangers on a Train - O Desconhecido do Norte Expresso - 1951 - Ruth Roman & Farley Granger
Dial M for Murder - Chamada para a Morte - 1954 - Robert Cummings & Grace Kelly
Rear Window - A Janela Indiscreta - 1954 - James Stewart & Grace Kelly
The Trouble With Harry - O Terceiro Tiro - 1955 - Shirley MacLaine & John Forsythe
To Catch a Thief - O Ladrão de Casaca - 1955 - Cary Grant & Grace Kelly
The Wrong Man - O Falso Culpado - 1956 Henry Fonda & Vera Miles
Vertigo - A Mulher que Viveu Duas Vezes - 1958 - Kim Novak & James Stewart
North by Northwest - Intriga Internacional - 1959 - Cary Grant & Eva Marie Saint
Psycho - Psico - 1960 - John Gavin & Janet Leigh
Marnie - 1964 - Sean Connery & Tippi Hedren
08/02/14
Oito e meio noves fora nada
Há uma pergunta que fica teimosamente a pairar no ar quando terminamos de ver Nine - Nove (Rob Marshall - 2009): como foi que isto sucedeu? Como foi possível que um filme produzido por uma equipa competente e experiente, na posse de avultados meios financeiros, conduzido por nomes sonantes nas vertentes técnica e artística, com um elenco de primeira água a transbordar de estrelas consagradas - que, além disso, não poderiam ter sido escolhidas de forma mais apropriada para cada papel -, e que homenageia energicamente, com algum "barulho" e aparato pelo meio, essa obra maior de Federico Fellini, 8½ (1963), seguindo-lhe as passadas narrativas e recriando algumas sequências famosas, tivesse falhado tão redondamente, tão frustrantemente, nos seus propósitos?
Mais, não podemos sequer afirmar que se trata de um mau filme, porque a tal competência e aprumo artísticos, levados ao extremo do profissionalismo pelos nomes envolvidos, se notam em cada fotograma, em cada coreografia encenada, e cada sopro interpretativo. Mas talvez que as suas forças intrínsecas sejam também as causas maiores do seu fracasso - ou ruína - a começar na ideia de homenagear 8½, uma obra que reconhecidamente não estará ao alcance de qualquer tentativa de abordagem - nem essa perspectiva de sucesso tem nada que ver com a largueza dos meios de produção. Recordemos o caso de Stardust Memories - Recordações (Woody Allen - 1980), por exemplo, que lidava com esta situação sobrepondo a persona Allen à persona Fellini, não deixando de aproveitar o território comum que há entre as duas, e que, à conta dos trejeitos idiossincráticos do autor norte-americano, e mais da sua identidade autoral distinta, "se safava" com a dita homage. Havia pois uma identidade suficientemente forte e autónoma que, sem cuspir no prato de onde comia, reclamava a si o protagonismo. Em Nine, os problemas começam por aí- é uma fita anónima, mesmo que artisticamente esforçada, sem a identidade necessária para lhe insuflar a alma, e consequentemente sem sustento para preencher as carcaças das personagens com algo que se assemelhe a vida.
Curiosamente, refira-se, Nine serve-se de algumas ideias provindas de Stardust Memories para compor o ramalhete (a conversa entre o realizador e a plateia logo no início do filme, por exemplo, e o nudge aos "good early movies", são reminiscências da obra de Allen, e não da de Fellini). Será porventura esse o maior mérito de Nine, contudo - o de não pretender imitar ou refazer a obra que reverencia de forma demasiado próxima, limitando-se a aproveitar a estrutura e as personagens, mas à distância, com outro tipo de abordagem estética e artística, compreendendo que há um limite que não deve transpor (andam por lá os paparazzos, mas é um alívio não terem enfiado com Nicole Kidman dentro da fonte, a fingir-se de Anita Ekberg em La Dolce Vita). Entende-se o que Marshall pretendeu fazer estruturalmente: pegar nas sequências que no filme de Fellini nos surgem como oníricas (as da imaginação, dos sonhos, fantasias, e das recordações de Guido/Marcello Mastroianni) e substituí-las por momentos musicais "sonhados" (passados na imaginação de Daniel Day-Lewis), com coreografias vistosas, semi-eróticas, mais ou menos modernas - um pouco ao jeito do que sucedia em Chicago (Marshall - 2002). A ideia era meritória, mas não lhe serviu para tornar Nine num filme estimulante - pelo contrário, apesar do aparato e do nervo que exibe, o resultado é confrangedoramente estéril do ponto de vista da empatia pelas emoções humanas (não por culpa dos actores), e até algo aborrecido do ponto de vista narrativo, não se afastando por uma vez da linha do politicamente correcto e do previsível, e matando logo por aí o almejo de alcançar Fellini, ainda que de longe (ao caos imensamente sugestivo e criativo de um, sucede a ordem certinha e arrumadinha do outro, e também sucede que isso não é bom). É a simples curiosidade - e apenas essa - que nos prende ao ecrã: para ver como tudo se vai frustrando, quebrando e desmoronando pelo caminho - o caminho para um 8½ cada vez mais distante.
Mais, não podemos sequer afirmar que se trata de um mau filme, porque a tal competência e aprumo artísticos, levados ao extremo do profissionalismo pelos nomes envolvidos, se notam em cada fotograma, em cada coreografia encenada, e cada sopro interpretativo. Mas talvez que as suas forças intrínsecas sejam também as causas maiores do seu fracasso - ou ruína - a começar na ideia de homenagear 8½, uma obra que reconhecidamente não estará ao alcance de qualquer tentativa de abordagem - nem essa perspectiva de sucesso tem nada que ver com a largueza dos meios de produção. Recordemos o caso de Stardust Memories - Recordações (Woody Allen - 1980), por exemplo, que lidava com esta situação sobrepondo a persona Allen à persona Fellini, não deixando de aproveitar o território comum que há entre as duas, e que, à conta dos trejeitos idiossincráticos do autor norte-americano, e mais da sua identidade autoral distinta, "se safava" com a dita homage. Havia pois uma identidade suficientemente forte e autónoma que, sem cuspir no prato de onde comia, reclamava a si o protagonismo. Em Nine, os problemas começam por aí- é uma fita anónima, mesmo que artisticamente esforçada, sem a identidade necessária para lhe insuflar a alma, e consequentemente sem sustento para preencher as carcaças das personagens com algo que se assemelhe a vida.
Woody Allen parodia a espantosa sequência de abertura de 8½ em Stardust Memories
Curiosamente, refira-se, Nine serve-se de algumas ideias provindas de Stardust Memories para compor o ramalhete (a conversa entre o realizador e a plateia logo no início do filme, por exemplo, e o nudge aos "good early movies", são reminiscências da obra de Allen, e não da de Fellini). Será porventura esse o maior mérito de Nine, contudo - o de não pretender imitar ou refazer a obra que reverencia de forma demasiado próxima, limitando-se a aproveitar a estrutura e as personagens, mas à distância, com outro tipo de abordagem estética e artística, compreendendo que há um limite que não deve transpor (andam por lá os paparazzos, mas é um alívio não terem enfiado com Nicole Kidman dentro da fonte, a fingir-se de Anita Ekberg em La Dolce Vita). Entende-se o que Marshall pretendeu fazer estruturalmente: pegar nas sequências que no filme de Fellini nos surgem como oníricas (as da imaginação, dos sonhos, fantasias, e das recordações de Guido/Marcello Mastroianni) e substituí-las por momentos musicais "sonhados" (passados na imaginação de Daniel Day-Lewis), com coreografias vistosas, semi-eróticas, mais ou menos modernas - um pouco ao jeito do que sucedia em Chicago (Marshall - 2002). A ideia era meritória, mas não lhe serviu para tornar Nine num filme estimulante - pelo contrário, apesar do aparato e do nervo que exibe, o resultado é confrangedoramente estéril do ponto de vista da empatia pelas emoções humanas (não por culpa dos actores), e até algo aborrecido do ponto de vista narrativo, não se afastando por uma vez da linha do politicamente correcto e do previsível, e matando logo por aí o almejo de alcançar Fellini, ainda que de longe (ao caos imensamente sugestivo e criativo de um, sucede a ordem certinha e arrumadinha do outro, e também sucede que isso não é bom). É a simples curiosidade - e apenas essa - que nos prende ao ecrã: para ver como tudo se vai frustrando, quebrando e desmoronando pelo caminho - o caminho para um 8½ cada vez mais distante.
Daniel Day-Lewis em Nine
É conhecido o contexto profissional e emocional que levou Fellini a realizar 8½. Depois do estrondoso cume criativo que deu pelo nome de La Dolce Vita, circa 1960, o realizador encontrou-se, pela primeira vez na vida, face a um vazio de ideias, sem saber o que fazer a seguir. Junto da sua equipa habitual de argumentistas, escarrapachou uns traços vagos sobre um escritor, também ele em crise criativa, apanhado numa teia sentimentalista entre a esposa e a amante. O filme, segundo Fellini, devia ser encenado como uma "comédia". O projecto foi sendo sucessivamente adiado porque o realizador, ao mesmo tempo que sabia tratar-se de uma história profundamente autobiográfica, não se identificava com a personagem principal - por ser um escritor. Para piorar o cenário, Mastroianni, o actor escolhido para o papel, havia recentemente sido utilizado por Michelangelo Antonioni em La Notte (1960), precisamente interpretando um escritor. Foi só quando Fellini se decidiu a mudar a profissão do seu futuro alter-ego no ecrã - de escritor para realizador - dois anos mais tarde, que o projecto arrancou finalmente com a produção. O resto também é conhecido - a essência do filme é uma reprodução metafórica (até certo ponto), pontuada por momentos surreais e oníricos que exprimem a culpa, o isolamento e a inquietação, da crise criativa e das expectativas por cumprir por que Fellini estava a passar ("Eu não tenho nada para dizer, mas quero dizê-lo à mesma!"). O outro eixo temático mestre, que nesse se intercepta, aborda a relação antagónica entre a Verdade e a Felicidade, tendo pelo meio a "problemática" da Sinceridade e a hipocrisia dos costumes sociais, e fazendo das relações amorosas e do "ideal feminino" o nervo ferido à beira do ponto de ruptura - ou já para lá dele. Filmado num preto-e-branco fortemente contrastado, o filme é uma delirante e insana viagem ao confins de Honestidade, em que deixam de importar as barreiras em relação à mensagem que se pretende transmitir, e que consegue, pela via artística, desenvencilhar o nó górdio paradoxal contido na sua premissa: "a felicidade é poder dizer a verdade sem magoar ninguém", lança Guido para o ar, em frente a uma plateia de mulheres, todas as mulheres por quem se terá sentido atraído ao longo da vida (a música? "A Cavalgada das Valquírias", muito antes de Coppola a ter enfeitado com helicópteros). Terá Fellini conseguido não magoar ninguém ao expor-se desta forma no celuloide?
Marcello Mastroianni em 8½
Ora, o filme de Marshall, seguindo o estreito plano da boa intenção e da correcção estética, sem novidade nem identidade, em vez de somar, subtrai, deixando pelo caminho o desvairo alucinado e claustrofóbico que Guido mantinha oculto dentro de si na obra de Fellini. Se a personagem que Day-Lewis interpreta se equivale à de Mastroianni - pelo menos de forma tentada -, o acondicionamento artístico de Nine dita que não haja desta vez uma saída possível para a imensa habilidade e versatilidade do actor - o abismo não olha de volta para a personagem de Nine como olhava para a de 8½ - com uma voragem caricatural insaciável, por vezes grotesca, por vezes amarga, por vezes nostálgica pela recordação, por vezes ensimesmada, divertida com as tropelias da sua imaginação (veja-se a sequência do enforcamento do crítico de cinema) - algo que em Nine não passa de uma miragem distante - uma vaga memória que não encontra eco na matriz onde se inspira.
05/02/14
"Unkungunlovo! Unkungunlovo!" *
* - Elefante! Elefante!
As Minas de Salomão, romance de aventuras em terras de África, obra imensamente popular publicada por Henry Rider Haggard em 1885 (no original: King Solomon's Mines), originou o género "mundo perdido" dentro da literatura, e foi traduzida para português por Eça de Queirós. O trabalho surpreendente que daí resultou vai, contudo, muito para além de uma simples e competente tradução - é possível escutar a voz de autor inconfundível de Eça por todos os cantos do texto. É uma obra a ser disponibilizada brevemente, em formato electrónico, pelo Projecto Adamastor.
Eis um excerto (texto original disponibilizado mais abaixo):
«José Silveira — ou antes o seu miserável esqueleto, com todos os ossos rompendo para fora da pele, mais seca que pergaminho e amarela como gema de ovos. Os olhos saltavam-lhe da cara, à maneira de dois bugalhos de sangue. E o cabelo que eu lhe vira grisalho, vinha branco, todo branco como uma bela estriga de linho.
— Água! gemeu ele. Água, pelas cinco chagas de Cristo!
O infeliz tinha os beiços horrivelmente estalados, e entre eles a língua pendia-lhe, toda inchada e toda negra!
— Água! gemeu ele. Água, pelas cinco chagas de Cristo!
O infeliz tinha os beiços horrivelmente estalados, e entre eles a língua pendia-lhe, toda inchada e toda negra!
Dei-lhe água com leite, de que bebeu talvez dois quartilhos, a grandes sorvos, e sem parar. Foi necessário arrancar-lhe a vasilha. Depois caiu de costas, rompeu a delirar. Ora gemia, ora gritava. E era sempre sobre as serras de Suliman, os diamantes e o deserto! Levei-o para dentro da tenda: e, com o pouco que tinha, fiz o pouco que podia. O homem estava perdido. Rente da meia-noite sossegou. Eu, esfalfado, adormeci. Acordei de madrugada; e, ao primeiro alvor da luz, dou com ele (forma sinistra!) de joelhos, à porta da barraca, de olhos cravados para o longe, para o deserto! Nesse instante, um raio de sol que nascia frechou através do vasto descampado, e foi bater ao fundo, a cem milhas de nós, o pico mais alto das serras de Suliman. O homem soltou um grito, atirou desesperadamente para diante os dois braços de esqueleto:
— Lá estão elas, Santo Deus, lá estão elas!... E dizer que não pude lá chegar! Parecem tão perto! Logo ali, uns passos mais... E agora acabou-se, estou perdido, ninguém mais pode lá ir!
De repente emudeceu. Depois virou para mim, muito devagar, a face lívida e como esgazeada por uma ideia brusca.
— Ó camarada, onde está você?... Já o não distingo, vai-me a fugir a vista!
— Estou aqui; sossegue, homem.
— Tenho tempo para sossegar, tenho toda a eternidade! Escute. Eu estou a morrer. Você tem sido bom comigo, camarada... E para que havia eu de levar o segredo para debaixo da terra? Ao menos alguém se aproveita! Talvez você lá possa chegar, se conseguir atravessar esse deserto que matou o meu pobre criado, que me está a matar a mim...
Começou então a procurar tremulamente dentro do peito da camisa. Tirou por fim uma espécie de bolsa de tabaco, já velha, apertada com uma correia. Estava tão fraco que as suas pobres mãos nem puderam desfazer o nó. Fez-me um gesto, um gesto exausto, para que eu o desatasse. Dentro havia um farrapo de linho amarelado, com linhas escritas, num tom antiquíssimo, de cor de ferrugem. E dentro do farrapo estava um papel dobrado.
— O papel, murmurou ele numa voz que se extinguia, é a cópia do que está escrito no trapo. Levou-me anos a decifrar, a entender... Foi um antepassado meu, um dos primeiros portugueses que vieram a Lourenço Marques, que escreveu isso, quando estava para morrer acolá naquelas serras. Chamava-se D. José da Silveira, e já lá vão trezentos anos... Um escravo que ia com ele, e que ficara a esperar, do lado de cá do monte, vendo que o amo não voltava procurou-o, foi dar com ele morto, e trouxe para Lourenço Marques o bocado de linho que tinha letras. Desde então ficou guardado na nossa família. Há trezentos anos! E ninguém pensou em o decifrar até que eu me meti nisso... Custou-me a vida. Mas talvez outro consiga. Talvez outro chegue lá, às malditas serras! Será então o homem mais rico deste mundo! O mais rico, o mais rico! Tente você, camarada... Não dê o papel a ninguém! Vá você!
As últimas palavras saíram como um débil sopro. Caiu de costas, recomeçou a delirar. Daí a uma hora tudo acabou, Deus tenha a sua alma em descanso! Morreu serenamente, sem esforço e sem dor. Por minhas mãos o enterrei, bem fundo na terra, com fortes pedregulhos por cima do peito. Ao menos assim não darão com ele os chacais.»
— Lá estão elas, Santo Deus, lá estão elas!... E dizer que não pude lá chegar! Parecem tão perto! Logo ali, uns passos mais... E agora acabou-se, estou perdido, ninguém mais pode lá ir!
De repente emudeceu. Depois virou para mim, muito devagar, a face lívida e como esgazeada por uma ideia brusca.
— Ó camarada, onde está você?... Já o não distingo, vai-me a fugir a vista!
— Estou aqui; sossegue, homem.
— Tenho tempo para sossegar, tenho toda a eternidade! Escute. Eu estou a morrer. Você tem sido bom comigo, camarada... E para que havia eu de levar o segredo para debaixo da terra? Ao menos alguém se aproveita! Talvez você lá possa chegar, se conseguir atravessar esse deserto que matou o meu pobre criado, que me está a matar a mim...
Começou então a procurar tremulamente dentro do peito da camisa. Tirou por fim uma espécie de bolsa de tabaco, já velha, apertada com uma correia. Estava tão fraco que as suas pobres mãos nem puderam desfazer o nó. Fez-me um gesto, um gesto exausto, para que eu o desatasse. Dentro havia um farrapo de linho amarelado, com linhas escritas, num tom antiquíssimo, de cor de ferrugem. E dentro do farrapo estava um papel dobrado.
— O papel, murmurou ele numa voz que se extinguia, é a cópia do que está escrito no trapo. Levou-me anos a decifrar, a entender... Foi um antepassado meu, um dos primeiros portugueses que vieram a Lourenço Marques, que escreveu isso, quando estava para morrer acolá naquelas serras. Chamava-se D. José da Silveira, e já lá vão trezentos anos... Um escravo que ia com ele, e que ficara a esperar, do lado de cá do monte, vendo que o amo não voltava procurou-o, foi dar com ele morto, e trouxe para Lourenço Marques o bocado de linho que tinha letras. Desde então ficou guardado na nossa família. Há trezentos anos! E ninguém pensou em o decifrar até que eu me meti nisso... Custou-me a vida. Mas talvez outro consiga. Talvez outro chegue lá, às malditas serras! Será então o homem mais rico deste mundo! O mais rico, o mais rico! Tente você, camarada... Não dê o papel a ninguém! Vá você!
As últimas palavras saíram como um débil sopro. Caiu de costas, recomeçou a delirar. Daí a uma hora tudo acabou, Deus tenha a sua alma em descanso! Morreu serenamente, sem esforço e sem dor. Por minhas mãos o enterrei, bem fundo na terra, com fortes pedregulhos por cima do peito. Ao menos assim não darão com ele os chacais.»
---
«"Yes, José Silvestre, or rather his skeleton and a little skin. His face was a bright yellow with bilious fever, and his large dark eyes stood nearly out of his head, for all the flesh had gone. There was nothing but yellow parchment-like skin, white hair, and the gaunt bones sticking up beneath.
"'Water! for the sake of Christ, water!' he moaned and I saw that his lips were cracked, and his tongue, which protruded between them, was swollen and blackish.
"I gave him water with a little milk in it, and he drank it in great gulps, two quarts or so, without stopping. I would not let him have any more. Then the fever took him again, and he fell down and began to rave about Suliman's Mountains, and the diamonds, and the desert. I carried him into the tent and did what I could for him, which was little enough; but I saw how it must end. About eleven o'clock he grew quieter, and I lay down for a little rest and went to sleep. At dawn I woke again, and in the half light saw Silvestre sitting up, a strange, gaunt form, and gazing out towards the desert. Presently the first ray of the sun shot right across the wide plain before us till it reached the faraway crest of one of the tallest of the Suliman Mountains more than a hundred miles away.
"'There it is!' cried the dying man in Portuguese, and pointing with his long, thin arm, 'but I shall never reach it, never. No one will ever reach it!'
"Suddenly, he paused, and seemed to take a resolution. 'Friend,' he said, turning towards me, 'are you there? My eyes grow dark.'
"'Yes,' I said; 'yes, lie down now, and rest.'
"'Ay,' he answered, 'I shall rest soon, I have time to rest—all eternity. Listen, I am dying! You have been good to me. I will give you the writing. Perhaps you will get there if you can live to pass the desert, which has killed my poor servant and me.'
"Then he groped in his shirt and brought out what I thought was a Boer tobacco pouch made of the skin of the Swart-vet-pens or sable antelope. It was fastened with a little strip of hide, what we call a rimpi, and this he tried to loose, but could not. He handed it to me. 'Untie it,' he said. I did so, and extracted a bit of torn yellow linen on which something was written in rusty letters. Inside this rag was a paper.
"Then he went on feebly, for he was growing weak: 'The paper has all that is on the linen. It took me years to read. Listen: my ancestor, a political refugee from Lisbon, and one of the first Portuguese who landed on these shores, wrote that when he was dying on those mountains which no white foot ever pressed before or since. His name was José da Silvestra, and he lived three hundred years ago. His slave, who waited for him on this side of the mountains, found him dead, and brought the writing home to Delagoa. It has been in the family ever since, but none have cared to read it, till at last I did. And I have lost my life over it, but another may succeed, and become the richest man in the world—the richest man in the world. Only give it to no one, senor; go yourself!'
"Then he began to wander again, and in an hour it was all over.
"God rest him! he died very quietly, and I buried him deep, with big boulders on his breast; so I do not think that the jackals can have dug him up. And then I came away."»
"'Water! for the sake of Christ, water!' he moaned and I saw that his lips were cracked, and his tongue, which protruded between them, was swollen and blackish.
"I gave him water with a little milk in it, and he drank it in great gulps, two quarts or so, without stopping. I would not let him have any more. Then the fever took him again, and he fell down and began to rave about Suliman's Mountains, and the diamonds, and the desert. I carried him into the tent and did what I could for him, which was little enough; but I saw how it must end. About eleven o'clock he grew quieter, and I lay down for a little rest and went to sleep. At dawn I woke again, and in the half light saw Silvestre sitting up, a strange, gaunt form, and gazing out towards the desert. Presently the first ray of the sun shot right across the wide plain before us till it reached the faraway crest of one of the tallest of the Suliman Mountains more than a hundred miles away.
"'There it is!' cried the dying man in Portuguese, and pointing with his long, thin arm, 'but I shall never reach it, never. No one will ever reach it!'
"Suddenly, he paused, and seemed to take a resolution. 'Friend,' he said, turning towards me, 'are you there? My eyes grow dark.'
"'Yes,' I said; 'yes, lie down now, and rest.'
"'Ay,' he answered, 'I shall rest soon, I have time to rest—all eternity. Listen, I am dying! You have been good to me. I will give you the writing. Perhaps you will get there if you can live to pass the desert, which has killed my poor servant and me.'
"Then he groped in his shirt and brought out what I thought was a Boer tobacco pouch made of the skin of the Swart-vet-pens or sable antelope. It was fastened with a little strip of hide, what we call a rimpi, and this he tried to loose, but could not. He handed it to me. 'Untie it,' he said. I did so, and extracted a bit of torn yellow linen on which something was written in rusty letters. Inside this rag was a paper.
"Then he went on feebly, for he was growing weak: 'The paper has all that is on the linen. It took me years to read. Listen: my ancestor, a political refugee from Lisbon, and one of the first Portuguese who landed on these shores, wrote that when he was dying on those mountains which no white foot ever pressed before or since. His name was José da Silvestra, and he lived three hundred years ago. His slave, who waited for him on this side of the mountains, found him dead, and brought the writing home to Delagoa. It has been in the family ever since, but none have cared to read it, till at last I did. And I have lost my life over it, but another may succeed, and become the richest man in the world—the richest man in the world. Only give it to no one, senor; go yourself!'
"Then he began to wander again, and in an hour it was all over.
"God rest him! he died very quietly, and I buried him deep, with big boulders on his breast; so I do not think that the jackals can have dug him up. And then I came away."»
Subscrever:
Mensagens (Atom)