17/12/13

Vanishing Point - Corrida Contra o Destino - Richard C. Sarafian - 1971


Ao nível da camada mais à superfície, Vanishing Point pode ser encarado como um suculento guilty pleasure, feito à justa medida da icónica "identidade cultural americana" projectada no início dos anos setenta, e que segue de perto as ideologias marginais: sex, drugs & rock-and-roll e live to ride, ride to live; um trepidante road-movie filmado em alta rotação, com sentido de espectáculo e poucas quebras no ritmo, em que os "maus" perseguem o "bom" pela estrada fora ao longo de vários estados, e com a imensidão a perder de vista da grande planície americana como pano de fundo.

Só que os "maus" não são propriamente maus, nem o "bons" são propriamente bons (não são, nem deixam de ser), pelo menos segundo as regras institucionais vigentes, e é por aqui que a começa a derrocada do "mito fundador" e a lapidação do American Dream. Por um lado, porque o aproveitamento telúrico da paisagem (de grande impacto e beleza visual) remete direitinho para a mitológica conquista do oeste (não serão os road-movies herdeiros naturais dos westerns?), só que desta feita com um propósito contextual oposto: aqui não se encena a "conquista do território inóspito", trata-se antes de uma tentativa de fuga ao longo dos "territórios já dominados" - uma fuga às autoridades pelo fio interminável do asfalto, mas uma fuga que é essencialmente "espiritual", uma fuga à ilusão do tal "sonho americano". Por outro lado, porque as personagens que povoam o filme, e com quem o "bom" se vai cruzando ao longo da viagem, são underdogs tipificados, em fuga também elas (ou, pelo menos, a encetarem tentativas de isolamento) de uma sociedade em decadência - são as franjas marginais do amargo "retorno emocional" da Guerra do Vietname (à qual não há referências explícitas no filme). A ilusão fugaz e mundana de consequências emocionais imprevisíveis proporcionada pela demanda do "Sonho Americano" é de resto fundamental para entender a recusa do "herói" em aceitar as várias oportunidades sexuais com que se depara ao longo do caminho. Numa delas, a metáfora utilizada é de tal forma crua que nos deparamos a olhar para uma jovem e inocente "América", a passear tranquilamente, sem roupas, numa motoreta, pelas dunas do deserto. Com um sorriso maroto no rosto, a jovem oferece a Kowalski nada mais nada menos do que... aquilo que ele quiser!

Kowalski (depois do filme, o nome fica na memória), o "bom", é uma figura misteriosa acerca de quem inicialmente nada sabemos - o típico herói cool e sem passado de não sei quantas fitas americanas, o last american hero, como alguém lhe chama às tantas, numa referência directa à "grande nação" e ao mesmo tempo indirecta à crise de valores que se está a viver. É (também) através das suas memórias, cuidadosamente inseridas e espaçadas ao longo do filme, que ficamos a conhecer as motivações e razões para um certo desencanto - emoções que não se lhe reflectem no rosto impassível, mais focado numa aparente necessidade de conduzir sempre "na esgalha".

Não deixa de ser curioso que o único personagem a adivinhar as reais intenções de Kowalski - o único que realmente "vê as coisas" - seja cego. Cego e negro, convém mencionar, porque nenhuma referência cultural é deixada ao acaso, porque o buraco de uma ferida chamada Ku Klux Klan (estamos de volta ao "mito fundador") é ainda profundo e está por cicatrizar, e porque, numa espécie de acto de redentor como que a fechar um ciclo que se vai repetindo, essa tal figura encarna, nada acidentalmente, o "anjo da guarda" de Kowalski.

Por baixo da carapaça musculada do entretenimento descartável e de rápido consumo, esconde-se um grito de revolta com profundas raízes sociais e culturais: a América exposta através dos seus mais representativos pilares.

Quase 40 anos depois, Quentin Tarantino homenagearia Vanishing Point fazendo incluir um Dodge Challenger R/T, versão 1970, na vertiginosa sequência final do seu Death Proof.

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