Warden: If I was to send my teeth into your eye right now, would you be able to stop me before I blinded you?
Qualquer pessoa já terá passado por uma experiência semelhante: chegar ao final de um filme em sobrecarga de sistema, com as ideias em curto-circuito, incapaz de assimilar, processar ou ordenar devidamente os dados que lhe foram transmitidos ao longo das duas horas anteriores. Aquilo que acabou de presenciar excedeu a sua capacidade de aceitação. E quanto à de entendimento, essa anda freneticamente à procura de um desenlace para um aglomerado de nós lógicos que se sobrepõem uns aos outros.
Shutter Island é um desses filmes, um thriller psicológico inquietante e perturbador desde o primeiro segundo (o fabuloso plano "em branco", de onde virá a irromper um ferry), glacial e meticuloso na construção da intriga, e capaz de subverter todo o sentido dos "factos" nos derradeiros instantes de película. Mal termina, não conseguimos largar da sua presença; os mecanismos que regem o nosso raciocínio teimam em passar em revista os acontecimentos narrativos, incessantemente, de forma obsessiva quanto à minúcia, tentando fazer encaixar umas nas outras as peças de um puzzle que no último instante mudou de desenho. Ficamos com a sensação de que a nossa suspension of disbelief ficou a balançar na corda bamba, num delicado exercício de equilíbrio.
1954. Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio) e Chuck Aule (Mark Ruffalo) são dois agentes federais destacados para investigar o misterioso desaparecimento de uma doente mental de uma instituição muito particular. O Hospital Ashecliffe, situado na ilha Shutter (um rochedo inóspito que nada mais alberga para alem desse hospital), acolhe simultâneamente os casos psiquiátricos mais complicados e os que mais perigo representem para a sociedade. Com muros altos, vedações electrificadas, e um destacamento residente de guardas fortemente armados, o local é um misto de colónia prisional de alta segurança e centro especializado de tratamento de doentes mentais. Um local de aparência ameaçadora que atira a nossa imaginação para épocas medievais. Sabemos que aquilo que se passa lá dentro, seja o que for, não transparece nem pode transparecer cá para fora, nunca, sob pena de condenar a instituição aos olhos da opinião pública.
Colocados ao corrente da situação pelo director da instituição (Ben Kingsley) - a doente parece ter-se evaporado no ar: escapou de um quarto trancado por fora e com barras nas janelas, e passou por uma dúzia de membros do staff sem que ninguém desse por nada -, os agentes cedo percebem que estão por sua conta e risco, e que há interesses terceiros a tentar abafar os contornos do caso. É-lhes sucessivamente negada a possibilidade de consultarem os arquivos médicos dos pacientes, a hipótese de falarem com o médico responsável pela doente desaparecida, e a liberdade para se deslocarem à vontade pelos terrenos da instituição. O hospital é constituído por três alas separadas: a ala dos homens, a das mulheres, e a dos "casos mais violentos" - uma fortificação medieval de pertinentes semelhanças com a biblioteca-labirinto do romance de Umberto Eco, O Nome da Rosa, um local de acesso proibido, que reúne “toda a sabedoria”, mas também um abismo de onde não se torna a sair depois de entrar…
Shutter Island é um filme que demora relativamente pouco tempo a informar-nos, sem quaisquer pretensões de modéstia, de que vamos ser descaradamente manipulados, e de que a nossa percepção da realidade está prestes a ficar tão distorcida quanto a mente de Teddy Daniels. A partir do primeiro quarto de hora de filme, as coisas deixam gradualmente de fazer sentido - ou melhor, há sempre pormenores, numa vincada constância incomodativa, que não encaixam no panorama circundante: personagens que se comportam de forma estranha, acontecimentos que parecem demasiado forçados, atitudes que contrariam a lógica da normalidade. Tal como na literatura existe a opção de narração na primeira pessoa, neste filme a câmara não larga em momento algum a personagem de DiCaprio: o ponto de vista do espectador está assim manipulado-limitado ao ponto de vista da personagem. Ora, é boa altura para revelar que o detective Teddy Daniels é uma criatura à beira de um esgotamento, um ser física e psicologicamente afectado, atormentado por recordações dilacerantes da guerra (referentes à libertação de um campo de concentração na Alemanha nazi) e constantemente assaltado por violentas e intrigantes visões do seu passado familiar. Estes pormenores condicionam irrevogavelmente a sua conduta profissional (ou antes: determinam-na) e ajudam-nos a entender, até ao limite que o argumento permite, o carácter explosivo e irreverente que caracteriza a personagem. É nesta investigação que lhe foi confiada (e para a qual, aliás, pretendeu ser destacado a partir do primeiro instante) que parece encontrar as forças que ainda o sustentam de pé. Não é só o mistério do desaparecimento de uma doente que está ali para desvendar: Teddy procura obsessivamente um criminoso de nome Laeddis, que julga ter sido responsável pela morte da sua mulher (Michelle Williams) e que crê estar aprisionado em Ashecliffe.
Seguindo à risca as boas práticas do manual de instruções do film noir, todo o passado que desconhecemos acerca de Teddy (revelado através de caleidoscópios oníricos) vai-se lentamente intercalando nos factos da investigação em curso, até um ponto em que já não são separáveis. As várias "camadas" e linhas narrativas que o filme vai seguindo numa espécie de mosaico disconexo, esses vários momentos espaciais e temporais que misturam realidade e ilusão, progridem numa convergência crescente até se unirem no desenlace final. Há detalhes específicos que se repetem ao longo do filme e que abrem as portas entre os compartimentos que a mente de Teddy parece ter decidido separar: a grafonola que toca música clássica na caserna do oficial (a mesma música que toca na sala de estar do director do hospital e a mesma grafonola que toca na sua casa de campo, no dia em que…), os papeis de arquivo que esvoaçam pelo ar (tal como o guia de registo nº 67 na sequência da falésia), a superfície ondulante das águas do lago (o lago onde a doente desaparecida terá afogado os seus três filhos). É premonitória a sequência em que Teddy vai riscando fósforo atrás de fósforo, para iluminar o caminho, à medida que se vai aproximando do prisioneiro que lhe vai apontar novas direcções para a verdade - são pequenos fogachos, pequenas revelações que vão surgindo, para logo serem engolidos novamente pela implacável escuridão. Uma imagem que está inclusivamente representada no poster do filme.
O desenlace é previsível? Talvez seja. Não nego que não me tenha ocorrido, assim de passagem, enquanto estava a ver o filme. O importante, contudo, não é saber a “solução” – é antes observar o domínio absoluto com que Scorsese conjuga as várias vertentes e nos transporta nessa viagem vertiginosa até ao momento final, um passeio que definitivamente não é para todos os estômagos; por vezes tem o trato de um pesadelo doloroso e o gosto amargo a sangue e a cinza nos lábios. É um filme que nunca deixa de ser complexo e cerebral no modo como apresenta a(s) sua(s) intriga(s).
Bizarro e agressivo na transmissão dos acontecimentos (é uma experiência “pesada”, para todos os efeitos), o filme exibe um jogo de iluminação com fortes contrastes cromáticos, alternado abruptamente entre o muito claro e o muito escuro, às vezes fazendo-o até no mesmo plano de imagem. O conjunto de cores escolhidas para retratar a ilha é propositadamente limitado, de tonalidades baças e apagadas, em oposição ao mundo dos pesadelos de Teddy, que parecem explodir de coloração em determinados momentos. A reforçar o ambiente de pesadelo, temos uma banda sonora imponente (por vezes algo intrusiva - como que a ameaçar a segurança do espectador) que não ficaria mal num filme de terror, e que não pára de nos berrar aos ouvidos: “não sabes onde te estás a meter!”.
É sabido que Denis Lehane se terá inspirado na literatura das irmãs Bronte e no filme Invasion of the Body Snatchers - A Terra em Perigo (Don Siegel - 1956) para escrever o seu livro, mas há outros filmes que são quase impossíveis não associar a Shutter Island, na sua versão cinematográfica. Entre eles, Minority Report - Relatório Minoritário (Steven Spielberg - 2002), que certa forma representa o seu contraponto tecnológico. Não é aleatoriamente que estabeleço a comparação: as personagens centrais dos dois filmes, agentes da lei responsáveis pela investigação de crimes violentos, partilham de uma mesma realidade emocional em relação à família (o seu passado encerra uma perda grave da qual nunca conseguiram totalmente recuperar, e acerca da qual frequentemente fantasiam situações de conforto), e vão passar por processos semelhantes para resolverem os casos em que estão envolvidos – processos que envolvem a correcta interpretação das "pistas" que lhe são passadas. Em Minority Report, John Anderton (Tom Cruise) recebia as dicas para os seus casos através de imagens retiradas sonhos dos precogs e, em Shutter Island, Teddy recebe mensagens e avisos através visões que tem da sua mulher.
E se estas "coincidências" não são suficientemente sólidas para fecharem uma associação, que dizer da maneira como as imagens dos crimes nos lagos nos são mostradas nos dois filmes? Da manipulação específica a que são sujeitas no próprio argumento, para confundir o protagonista (e com ele o espectador), levando-o a seguir pistas falsas, e da forma como no final essas imagens são “sincronizadas” com a realidade, revelando a verdade? Um outro ponto de contacto: Max Von Sydow, a figura sombria e predatória que paira sobre os protagonistas dos filmes e que se mantém acima de toda a intriga manipuladora…
O contraponto é a tecnologia. Se em Minority Report toda a "manipulação da verdade-realidade" se fazia em função do uso da tecnologia, em Shutter Island a tecnologia é encarada à distância, quase como uma ameaça (há inclusivamente uma paciente que se refere, com repulsa, a essa coisa “moderna chamada televisão, que faz aparecer pessoa estranhas dentro da nossa casa”), ou como um reduto para resolver os casos de psiquiatria considerados perdidos (a lobotomia transversal). Spielberg filma o futuro, Scorsese filma o passado, mas em ambos uma obsessiva demanda pela verdade oculta.
Não se espere um filme de fácil degustação - é disforme e retorcida a matéria que o constitui. A esse respeito, Scorsese nunca fez concessões.
Laeddis: Which would be worse? To live as a monster, or die as a good man?