29/12/13

Led Zeppelin


John Bonham (bateria), Robert Plant (voz), Jimmy Page (guitarra) e John Paul Jones (baixo, teclado).

Travei conhecimento com os Led Zeppelin da forma que presumo ser a mais popular entre os soon-to-be-fans da banda: alguém me passou uma cassete com uma série de temas de vários artistas (nos tempos em que esse suporte era moeda corrente nas gravações de e para amigos) e lá para o meio, misturada entre as demais desconhecidas, sem qualquer contexto ou destaque, aparecia Stairway to Heaven. Até podia ser que os restantes trabalhos da banda não prestassem para nada (viria a descobrir mais tarde que não era assim, e que os Zeppelin, no auge da sua carreira, primeira metade dos ano 70, suplantaram os Rolling Stones em discos e bilhetes para concertos vendidos), mas aquele som em específico significou, naquele momento em que o ouvi pela primeira vez, uma verdadeira escadaria até ao céu - nunca havia experienciado nada que remotamente se assemelhasse àquilo. Começava com uma melódica suavidade acústica dedilhada por Jimmy Page, acompanhado por uma flauta serena e pela voz, em plena contenção, de Robert Plant, e terminava, finda a "escadaria" e o crescente instrumental progressivo, numa explosiva orgia eléctrica de texturas e cores. Assim que acabou, volvi o walkman atrás e repeti a audição... e depois repeti-a mais uma série de vezes. Com uns invulgares 8 minutos de duração, Stairway to Heaven é a composição mais popular de uma das bandas de rock/heavy-metal mais importantes e influentes de sempre, mas é apenas um caso de excelência entre os muitos que há para descobrir (para quem não conheça o grupo, obviamente). 

 A capa do primeiro album (sem título) - 1968

A sonoridade típica dos Zeppelin, mantida num espaço espantosamente homogéneo ao longo de toda a carreira (mesmo considerando as naturais evoluções instrumentais), é grave, volumosa e bastante preenchida, com cada instrumento a ocupar um espaço simultaneamente protagonista e complementar em relação aos restantes, numa harmonia pesada, poderosa e constante que os aproxima daquilo que pode ser chamado heavy-metal (género de que aliás são precursores).  E contudo, não é bem isso que é, ou não é "apenas" isso. É heavy e é metal, sem dúvida, pelo menos em grande parte do reportório, mas é também folk, blues e "simples" rock'n'roll, tudo misturado, e apresentado por vezes em baladas serenas e "doridas" que contrariam as bases do género, mas que ao mesmo tempo não deixam de lhe estar próximas.


A capa de Houses of the Holy - 1973  - inspirada na obra de Ficção Científica Childhood's End, de Arthur C. Clarke

Os Led Zeppelin estiveram reunidos enquanto banda entre 1968 e 1980, ano em que John Bonham faleceu. Desde então os restantes membros têm aparecido juntos em reuniões esporádicas e concertos ao vivo.

Vou resistir à tentação de colocar aqui o tema Stairway to Heaven (e o mesmo em relação ao curiosíssimo The Battle of Evermore), e vou optar por temas mais "normais" dentro daquilo que será a sua identidade sonora.

Good Times Bad Times,  do álbum I - 1969


Celebration Day,  do álbum III - 1970


Kashmir,  do álbum Physical Graffiti - 1975

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Deixo ainda uma parte do tributo da presidência dos Estados Unidos no "Kennedy Center Honors" aos Led Zeppelin. A cerimónia decorreu a 26 de Dezembro de 2012, contou com actuações dos Foo Fighters, Kid Rock, Lenny Kravitz e das Heart a interpretarem temas da banda, e com Jack Black a apresentar.


24/12/13

Mensagem de Natal

   
 



No edifício Nakatomi Plaza, John McClane (Bruce Willis), o Pai Natal de serviço, fazia chegar de elevador esta mensagem aos maus da fita, em Die Hard - Assalto ao Arranha Céus. Corria o ano de 1988 e o cinema de acção não mais seria o mesmo. Ainda hoje os clones e as variações em torno do modelo nascem como cogumelos

A Invenção dos Sonhos

A invenção dos sonhos é a invenção do cinema, e em Hugo - A Invenção de Hugo Cabret (2011) os seus artífices são Georges Méliès e Martin Scorsese, um dos pioneiros maiores da 7ª Arte nos anos que sucederam a sua descoberta, no final do século XIX, e um dos grandes realizadores americanos da actualidade, respectivamente. O livro (estupendo), história e ilustrações, foi publicado por Brian Selznick em 2007 e, para além de todos os elogios que justamente mereceu vindos dos quatro cantos do mundo, acabou por determinar o "encontro" entre esses dois titãs do cinema. Separados no espaço e no tempo, Méliès e Scorsese partilham de um mesmo fascínio pelo artifício técnico, pelas possibilidade infinitas na criação de ilusões e fantasias, e sobretudo pela capacidade que o cinema tem em proporcionar aos espectadores a magia dos "sonhos acordados", como às tantas a personagem de Hugo (Asa Butterfield) refere no filme.

Hugo é uma fábula moderna que evoca a memória e a nostalgia dos primórdios do cinema - situado na Paris cosmopolita dos anos 30 (a estação de comboios é o seu microcosmo representativo), é uma fita carregada de fantasia e de fantasias, em que Méliès (Ben Kinglsey) é carinhosamente apelidado de "Papá Georges", e em que o deslumbramento da descoberta da magia nos é transmitido através do olhar de uma criança. A criança fascinada somos todos nós, mas é também Scorsese, humilde, a prestar homenagem a um dos seus mentores espirituais do passado (uma espécie de Jules Verne do celulóide), reproduzindo história e técnica, narrando situações e emoções, e preenchendo as lacunas com a sua persona cinematográfica muito peculiar. A estrutura do próprio filme parece gravitar em torno do aproveitamento físico e visual das formas e feitios, da engenharia técnica que agrega "as partes", com gigantescas rodas dentadas, engrenagens e maquinaria de precisão mecânica a dominarem e a preencherem o espaço de ecrã, e a servirem de metrónomos escondidos ao funcionamento da sociedade (chegam-nos por vezes reminiscências da Metropolis de Lang). Dir-se-ia que a ciatividade fantasiosa e o gosto pela ilusão de Méliès encontram na geometria tecnicista e hiper-dinâmica scorsesiana o formato de expressão ideal para serem recordados através do cinema que se produz hoje em dia. Nesta vertente, é importante destacar a significância dos efeitos especiais e do CGI - desta feita pela positiva, e de uma forma muito pragmática. Se por um lado o seu artificialismo colorido e brilhante, e a sua falta de "peso e volume" são notórios, estes aspectos jogam a favor do tom de fábula da narrativa - o faz-de-conta é um factor conhecido e partilhado pelo público desde o início, numa celebração una entre o lado de lá e o lado de cá da tela - e nem poderia ser de outra forma, pelo menos circunscrevendo a situação ao filme em causa. Há um travelling de câmara absolutamente espantoso a abrir o filme, que começa num grande plano sobre a cidade de Paris, com a câmara depois a deslizar suavemente em "zoom picado", numa vertigem delirante que termina estática em frente aos olhos de Hugo, oculto atrás do número quatro de um dos relógios da estação de comboios onde vive. O resto é um festival incessante de luz (muito a propósito de cinema) e cor, na maior parte das vezes num sépia tintado onde despontam alguns realces parcelares mais naturalistas.

Fica um aviso/sugestão: tal com na maioria dos filmes de Martin Scorsese, se não mesmo em todos, uma só visualização não chega para absorver e apreciar devidamente os "truques" do mestre. Os "insistentes" que prestarem a devida atenção à montagem e edição de Hugo sairão largamente recompensados...



















22/12/13

Armas de incubação maciça

O prefácio escrito por Aldous Huxley, em 1946, para uma edição de Brave New World - Admirável Mundo Novo, começa assim:

«Chronic remorse, as all the moralists are agreed, is a most undesirable sentiment. If you have behaved badly, repent, make what amends you can and address yourself to the task of behaving better next time. On no account brood over your wrong-doing. Rolling in the muck is not the best way of getting clean.»

«O remorso crónico, e com isto todos os moralistas estão de acordo, é um sentimento bastante indesejável. Se considerais ter agido mal, arrependei-vos, corrigi os vossos erros na medida do possível e tentai conduzir-vos melhor da próxima vez. E não vos entregueis, sob nenhum pretexto, à meditação melancólica das vossas faltas. Rebolar no lodo não é, com certeza, a melhor maneira de alguém se lavar.»

Há uma nova edição da obra no mercado, pela chancela da Antígona, que actualiza extensamente a tradução feita por Mário-Henrique Leiria em 1955, para a Livros do Brasil. Se pretextos fossem necessários  para revisitar uma das obras de Ficção Científica mais premonitórias e influentes de sempre, publicada nesse ano longínquo de 1932, este é um dos que não envergonham o interlocutor.

18/12/13

Ensaio Sobre a Cegueira - José Saramago - 1995


Cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança. 

Ensaio Sobre a Cegueira foi o último livro publicado por José Saramago antes de lhe ter sido atribuído o Prémio Nobel da Literatura, em 1998, e apesar de não constituir uma das peças basilares para a definição do seu estatuto enquanto autor/escritor/pensador mundialmente reconhecido (algo que por esta altura já não tinha contestação), não deixa de ser um marco incontornável na sua obra, abordando um conjunto de temáticas inseridas na sua visão simultaneamante crítica e humanista das normas que regem a vida em sociedade. Servindo-se da voz literária inconfundível que Saramago cunhou em Levantado do Chão (1980), e que celebrizou os seus romances desde então, Ensaio Sobre a Cegueira é mais uma imponente "reflexão que obriga a reflectir", uma meditação inquietante sobre o "estado das coisas", com poder de fogo suficiente para nos fazer questionar a ordem e a prioridade das escolhas na sociedade em que vivemos, sobretudo do ponto de vista dos valores morais que julgamos partilhar - aqueles que supostamente nos separariam dos animais irracionais.

E se todas as pessoas cegassem de um momento para o outro?

Se de um ponto de vista narrativo mais imediato pareça evidente o apelo sedutor de um enredo que coloca a nu a fragilidade estrutural da teia comunitária e acompanha a derrocada social tornando toda a gente cega, focando os infortúnios quotidianos de perto, ao nível do indivíduo, e não poupando nas descrições sórdidas e bastante perturbantes dos eventos que provavelmente sucederiam nessas circunstâncias, a cegueira a que a alude o título do livro - e sobre a qual é erguido este "ensaio" - não é de ordem física, mas pertence antes ao domínio espiritual e moral. É a denúncia desta cegueira social que interessa a Saramago explorar, e se noutras obras suas (em todas?) essa preocupação já era um factor presente, determinante até, aqui ganha contornos ainda mais explícitos - a(s) palavra(s) assim o estabelecem. 

Partindo de um mecanismo de impulsão narrativo comum na sua escrita, um "what if…" que subverte determinado pormenor da realidade para depois explorar, numa sucessão de encadeamentos causa-efeito, como decorreria o dia-a-dia das personagens face à mudança sugerida, Saramago encena, usando como cenário de fundo a sociedade contemporânea e a vida numa grande metrópole, aquilo que pode ser descrito como uma espécie de abordagem alternativa à Alegoria da Caverna, de Platão, com a deliciosa particularidade de inverter o modo como se alcança o conhecimento. Mantêm-se a premissa fundamental (o caminho em direção à verdade) e a questão das perspectivas que se actualizam (e de onde parte a absorção da realidade), "Era cego e agora consigo ver", mas parte-se o princípio físico inverso para justificar o princípio moral, "Foi necessário cegar para conseguir ver". E aquilo que as personagens sem nome conseguem ver nitidamente neste livro, agora que estão cegas, é a importância de valores que há muito relegaram para segundo plano: o respeito, a confiança e o direito à igualdade entre todo os que nascem humanos. Saramago regressaria mais tarde à alegoria de Platão no livro A Caverna (2000), mas trata-se de um romance menor, sem o alcance nem o apelo abrangentes de Ensaio Sobre a Cegueira.
 
Aquilo que poderia facilmente escorregar para o desastre literário nas mãos de um autor menos dotado, ganha no discurso rigoroso e sapiente de Saramago, com os habituais espaços extra-narrativos dedicados à análise incisiva e por vezes irónica dos "porquês das coisas", a relevância de uma epifania (destituída da sua vertente religiosa), tratada a espaços com a violência (controlada) de um terramoto, e a outros com a sensibilidade de quem entende a importância e a necessidade do afecto humano. Será porventura um dos romances de mais fácil acesso a quem pretenda iniciar-se na literatura de Saramago, mesmo não abdicando o livro da prosa "estranha" que foge à estruturação sintáctica do português tal como nos ensinaram na escola. Um factor diferenciativo perante o qual apenas nos devemos prostrar- é que, depois de se entranhar, dificilmente o quereremos esquecer. Ponto de partida, portanto, para outras obras de relevo que se afiguream mais densas no corpo de trabalho de Saramago (Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo ReisO Evangelho Segundo Jesus Cristo e História do Cerco de Lisboa por exemplo), mas que têm muito mais para oferecer do que a leitura isolada de Ensaio Sobre a Cegueira.

Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos, façamos tudo para não viver inteiramente como animais.


17/12/13

Vanishing Point - Corrida Contra o Destino - Richard C. Sarafian - 1971


Ao nível da camada mais à superfície, Vanishing Point pode ser encarado como um suculento guilty pleasure, feito à justa medida da icónica "identidade cultural americana" projectada no início dos anos setenta, e que segue de perto as ideologias marginais: sex, drugs & rock-and-roll e live to ride, ride to live; um trepidante road-movie filmado em alta rotação, com sentido de espectáculo e poucas quebras no ritmo, em que os "maus" perseguem o "bom" pela estrada fora ao longo de vários estados, e com a imensidão a perder de vista da grande planície americana como pano de fundo.

Só que os "maus" não são propriamente maus, nem o "bons" são propriamente bons (não são, nem deixam de ser), pelo menos segundo as regras institucionais vigentes, e é por aqui que a começa a derrocada do "mito fundador" e a lapidação do American Dream. Por um lado, porque o aproveitamento telúrico da paisagem (de grande impacto e beleza visual) remete direitinho para a mitológica conquista do oeste (não serão os road-movies herdeiros naturais dos westerns?), só que desta feita com um propósito contextual oposto: aqui não se encena a "conquista do território inóspito", trata-se antes de uma tentativa de fuga ao longo dos "territórios já dominados" - uma fuga às autoridades pelo fio interminável do asfalto, mas uma fuga que é essencialmente "espiritual", uma fuga à ilusão do tal "sonho americano". Por outro lado, porque as personagens que povoam o filme, e com quem o "bom" se vai cruzando ao longo da viagem, são underdogs tipificados, em fuga também elas (ou, pelo menos, a encetarem tentativas de isolamento) de uma sociedade em decadência - são as franjas marginais do amargo "retorno emocional" da Guerra do Vietname (à qual não há referências explícitas no filme). A ilusão fugaz e mundana de consequências emocionais imprevisíveis proporcionada pela demanda do "Sonho Americano" é de resto fundamental para entender a recusa do "herói" em aceitar as várias oportunidades sexuais com que se depara ao longo do caminho. Numa delas, a metáfora utilizada é de tal forma crua que nos deparamos a olhar para uma jovem e inocente "América", a passear tranquilamente, sem roupas, numa motoreta, pelas dunas do deserto. Com um sorriso maroto no rosto, a jovem oferece a Kowalski nada mais nada menos do que... aquilo que ele quiser!

Kowalski (depois do filme, o nome fica na memória), o "bom", é uma figura misteriosa acerca de quem inicialmente nada sabemos - o típico herói cool e sem passado de não sei quantas fitas americanas, o last american hero, como alguém lhe chama às tantas, numa referência directa à "grande nação" e ao mesmo tempo indirecta à crise de valores que se está a viver. É (também) através das suas memórias, cuidadosamente inseridas e espaçadas ao longo do filme, que ficamos a conhecer as motivações e razões para um certo desencanto - emoções que não se lhe reflectem no rosto impassível, mais focado numa aparente necessidade de conduzir sempre "na esgalha".

Não deixa de ser curioso que o único personagem a adivinhar as reais intenções de Kowalski - o único que realmente "vê as coisas" - seja cego. Cego e negro, convém mencionar, porque nenhuma referência cultural é deixada ao acaso, porque o buraco de uma ferida chamada Ku Klux Klan (estamos de volta ao "mito fundador") é ainda profundo e está por cicatrizar, e porque, numa espécie de acto de redentor como que a fechar um ciclo que se vai repetindo, essa tal figura encarna, nada acidentalmente, o "anjo da guarda" de Kowalski.

Por baixo da carapaça musculada do entretenimento descartável e de rápido consumo, esconde-se um grito de revolta com profundas raízes sociais e culturais: a América exposta através dos seus mais representativos pilares.

Quase 40 anos depois, Quentin Tarantino homenagearia Vanishing Point fazendo incluir um Dodge Challenger R/T, versão 1970, na vertiginosa sequência final do seu Death Proof.

13/12/13

Lord of the Flies - O Deus das Moscas - William Golding - 1954


Um avião despenha-se numa pequena ilha deserta, deixando como únicos sobreviventes um grupo de crianças de idades compreendidas entre os 6 e os 12 anos. Algo desorientadas de início, rapidamente tomam consciência de que estão entregues a si mesmas, sem adultos por perto para lhes indicarem o que devem fazer ou como se devem comportar - mas também para lhes assegurar o sustentáculo necessário à vida tal como estavam habituadas até aí, comida, um lar, e a afeição natural do ambiente familiar. Alguns dos mais velhos começam, logo nesta fase, a anhar um protagonismo que lhes é natural, tentando orientar as acções dos restantes sobreviventes.

Numa primeira reunião de assembleia, é escolhido um líder e são estabelecidos procedimentos para regular a vida na nova sociedade: uma fogueira será levantada e alimentada continuamente, de maneira a servir de aviso a possíveis navios que passem perto do local; uma série de abrigos será construída para servir ao descanso nocturno, colocando-os longe da escuridão ameaçadora da noite; e será escolhido um grupo de caçadores para trazerem carne para as refeições, em alternativa aos frutos que vão apanhando do chão e que não chegam para os manter bem nutridos. Envolvidos pelo clima paradisíaco da ilha, com longas praias rodeadas de uma selva luxuriante e livres para brincarem ao que bem lhes apetece, a crianças vivem momentos de intensa euforia.

A ordem e a intenção vão, no entanto, desvanecer-se aos poucos, à medida que o laxismo, a ausência de uma autoridade soberana comummente aceite, o aparecimento de um estranho monstro que os coloca nos limites da histeria, e a necessidade imperiosa de sobrevivência, vão arrastando o grupo para um estado semi-selvagem, em que a face mais negra dos seus caracteres emerge para dominar.

Escrito em 1954 por William Golding (Nobel da literatura em 1983), O Deus das Moscas, para além de uma poderosa e inquietante abordagem à questão da necessidade de regras sociais, pode ser entendido como uma aterradora parábola sobre o fascínio que o mal exerce sobre o ser humano.

O livro está orientado como uma descida progressiva ao inferno da alma humana, e torna-se particularmente incisivo na medida em que apresenta às crianças um cenário natural dotado de todas as condições para lhes proporcionar felicidade (há quem aponte um sentido metafórico relativamente ao Jardim do Éden). Se de início a nossa atitude perante os acontecimentos é a mais completa passividade, em muito pouco tempo sentimos o horror e a vontade de entrar história adentro para "corrigir" a ordem das coisas. É que às páginas tantas, já não vemos apenas o simples esquecimento, o simples desprender, em relação ao sentido de humanidade presente na memória do grupo. Vemos uma renúncia declarada e consciente, o abraçar da escuridão.

Um clássico indispensável, para ler e colocar na prateleira ao lado de 1984.

10/12/13

Ainda sobre Shutter Island...

... para referenciar a adequação da banda sonora, escolhida por Robbie Robertson, antigo guitarrista dos The Band, e amigo e colaborador de Scorsese desde que este filmou o concerto de despedida da banda em The Last Waltz. É formada por um alinhamento de temas dispersos, reunindo temas clássicos e modernos não originais (não foram compostos para o filme), e que no seu conjunto criam a ambiência onírica certa para acondicionar os dilacerados estados de alma de Teddy Daniels (DiCaprio).

A primeira sugestão que deixo, da autoria do compositor poláco Krzysztof Penderecki, será facilmente reconhecida por quem tiver visto o filme. É a peça responsável pelo compasso sinistro e sombrio que envolve Teddy no momento em que está prestes a iniciar a investigação (e que se faz ouvir também mais tarde, noutros momentos ao longo do filme). De início começamos por imaginar que seja a sirene do ferry-boat a sinalizar a aproximação a terra, mas o som prolonga-se à medida que penetramos no mistério da ilha e no pesadelo demente do seu conhecimento.


Outra sugestão é o tema escolhido para acompanhar os créditos finais, This Bitter Earth, segundo uma interpretação de Dinah Washington que data de 1960, aqui sobreposta ao tema On the Nature of Daylight, de Max Richter, publicado em 2004. Após a decisão tomada conscientemente pela personagem de DiCaprio ao fechar do pano, seria difícil acertar mais perto do centro do alvo no que respeita a um invólucro emocional trágico e sereno apropriado à ocasião, tanto no plano melódico e instrumental, como na letra.


This bitter earth
Well, what fruit it bears
What good is love
Mmmm that no one shares
And if my life is like the dust
Oooh that hides the glow of a rose
What good am I
Heaven only knows
Lord, this bitter earth
Yes, can be so cold
Today youre young
Too soon, youre old
But while a voice within me cries
Im sure someone may answer my call
And this bitter earth
Ooooo may not
Oh be so bitter after all

Shutter Island - Martin Scorsese - 2010


Warden: If I was to send my teeth into your eye right now, would you be able to stop me before I blinded you? 

Qualquer pessoa já terá passado por uma experiência semelhante: chegar ao final de um filme em sobrecarga de sistema, com as ideias em curto-circuito, incapaz de assimilar, processar ou ordenar devidamente os dados que lhe foram transmitidos ao longo das duas horas anteriores. Aquilo que acabou de presenciar excedeu a sua capacidade de aceitação. E quanto à de entendimento, essa anda freneticamente à procura de um desenlace para um aglomerado de nós lógicos que se sobrepõem uns aos outros.


Shutter Island é um desses filmes, um thriller psicológico inquietante e perturbador desde o primeiro segundo (o fabuloso plano "em branco", de onde virá a irromper um ferry), glacial e meticuloso na construção da intriga, e capaz de subverter todo o sentido dos "factos" nos derradeiros instantes de película. Mal termina, não conseguimos largar da sua presença; os mecanismos que regem o nosso raciocínio teimam em passar em revista os acontecimentos narrativos, incessantemente, de forma obsessiva quanto à minúcia, tentando fazer encaixar umas nas outras as peças de um puzzle que no último instante mudou de desenho. Ficamos com a sensação de que a nossa suspension of disbelief ficou a balançar na corda bamba, num delicado exercício de equilíbrio.


1954. Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio) e Chuck Aule (Mark Ruffalo) são dois agentes federais destacados para investigar o misterioso desaparecimento de uma doente mental de uma instituição muito particular. O Hospital Ashecliffe, situado na ilha Shutter (um rochedo inóspito que nada mais alberga para alem desse hospital), acolhe simultâneamente os casos psiquiátricos mais complicados e os que mais perigo representem para a sociedade. Com muros altos, vedações electrificadas, e um destacamento residente de guardas fortemente armados, o local é um misto de colónia prisional de alta segurança e centro especializado de tratamento de doentes mentais. Um local de aparência ameaçadora que atira a nossa imaginação para épocas medievais. Sabemos que aquilo que se passa lá dentro, seja o que for, não transparece nem pode transparecer cá para fora, nunca, sob pena de condenar a instituição aos olhos da opinião pública.


Colocados ao corrente da situação pelo director da instituição (Ben Kingsley) - a doente parece ter-se evaporado no ar: escapou de um quarto trancado por fora e com barras nas janelas, e passou por uma dúzia de membros do staff sem que ninguém desse por nada -, os agentes cedo percebem que estão por sua conta e risco, e que há interesses terceiros a tentar abafar os contornos do caso. É-lhes sucessivamente negada a possibilidade de consultarem os arquivos médicos dos pacientes, a hipótese de falarem com o médico responsável pela doente desaparecida, e a liberdade para se deslocarem à vontade pelos terrenos da instituição. O hospital é constituído por três alas separadas: a ala dos homens, a das mulheres, e a dos "casos mais violentos" - uma fortificação medieval de pertinentes semelhanças com a biblioteca-labirinto do romance de Umberto Eco, O Nome da Rosa, um local de acesso proibido, que reúne “toda a sabedoria”, mas também um abismo de onde não se torna a sair depois de entrar…

 

Shutter Island é um filme que demora relativamente pouco tempo a informar-nos, sem quaisquer pretensões de modéstia, de que vamos ser descaradamente manipulados, e de que a nossa percepção da realidade está prestes a ficar tão distorcida quanto a mente de Teddy Daniels. A partir do primeiro quarto de hora de filme, as coisas deixam gradualmente de fazer sentido - ou melhor, há sempre pormenores, numa vincada constância incomodativa, que não encaixam no panorama circundante: personagens que se comportam de forma estranha, acontecimentos que parecem demasiado forçados, atitudes que contrariam a lógica da normalidade. Tal como na literatura existe a opção de narração na primeira pessoa, neste filme a câmara não larga em momento algum a personagem de DiCaprio: o ponto de vista do espectador está assim manipulado-limitado ao ponto de vista da personagem. Ora, é boa altura para revelar que o detective Teddy Daniels é uma criatura à beira de um esgotamento, um ser física e psicologicamente afectado, atormentado por recordações dilacerantes da guerra (referentes à libertação de um campo de concentração na Alemanha nazi) e constantemente assaltado por violentas e intrigantes visões do seu passado familiar. Estes pormenores condicionam irrevogavelmente a sua conduta profissional (ou antes: determinam-na) e ajudam-nos a entender, até ao limite que o argumento permite, o carácter explosivo e irreverente que caracteriza a personagem. É nesta investigação que lhe foi confiada (e para a qual, aliás, pretendeu ser destacado a partir do primeiro instante) que parece encontrar as forças que ainda o sustentam de pé. Não é só o mistério do desaparecimento de uma doente que está ali para desvendar: Teddy procura obsessivamente um criminoso de nome Laeddis, que julga ter sido responsável pela morte da sua mulher (Michelle Williams) e que crê estar aprisionado em Ashecliffe.


Seguindo à risca as boas práticas do manual de instruções do film noir, todo o passado que desconhecemos acerca de Teddy (revelado através de caleidoscópios oníricos) vai-se lentamente intercalando nos factos da investigação em curso, até um ponto em que já não são separáveis. As várias "camadas" e linhas narrativas que o filme vai seguindo numa espécie de mosaico disconexo, esses vários momentos espaciais e temporais que misturam realidade e ilusão, progridem numa convergência crescente até se unirem no desenlace final. Há detalhes específicos que se repetem ao longo do filme e que abrem as portas entre os compartimentos que a mente de Teddy parece ter decidido separar: a grafonola que toca música clássica na caserna do oficial (a mesma música que toca na sala de estar do director do hospital e a mesma grafonola que toca na sua casa de campo, no dia em que…), os papeis de arquivo que esvoaçam pelo ar (tal como o guia de registo nº 67 na sequência da falésia), a superfície ondulante das águas do lago (o lago onde a doente desaparecida terá afogado os seus três filhos). É premonitória a sequência em que Teddy vai riscando fósforo atrás de fósforo, para iluminar o caminho, à medida que se vai aproximando do prisioneiro que lhe vai apontar novas direcções para a verdade - são pequenos fogachos, pequenas revelações que vão surgindo, para logo serem engolidos novamente pela implacável escuridão. Uma imagem que está inclusivamente representada no poster do filme.


O desenlace é previsível? Talvez seja. Não nego que não me tenha ocorrido, assim de passagem, enquanto estava a ver o filme. O importante, contudo, não é saber a “solução” – é antes observar o domínio absoluto com que Scorsese conjuga as várias vertentes e nos transporta nessa viagem vertiginosa até ao momento final, um passeio que definitivamente não é para todos os estômagos;  por vezes tem o trato de um pesadelo doloroso e o gosto amargo a sangue e a cinza nos lábios. É um filme que nunca deixa de ser complexo e cerebral no modo como apresenta a(s) sua(s) intriga(s).

Bizarro e agressivo na transmissão dos acontecimentos (é uma experiência “pesada”, para todos os efeitos), o filme exibe um jogo de iluminação com fortes contrastes cromáticos, alternado abruptamente entre o muito claro e o muito escuro, às vezes fazendo-o até no mesmo plano de imagem. O conjunto de cores escolhidas para retratar a ilha é propositadamente limitado, de tonalidades baças e apagadas, em oposição ao mundo dos pesadelos de Teddy, que parecem explodir de coloração em determinados momentos. A reforçar o ambiente de pesadelo, temos uma banda sonora imponente (por vezes algo intrusiva - como que a ameaçar a segurança do espectador) que não ficaria mal num filme de terror, e que não pára de nos berrar aos ouvidos: “não sabes onde te estás a meter!”.


É sabido que Denis Lehane se terá inspirado na literatura das irmãs Bronte e no filme Invasion of the Body Snatchers - A Terra em Perigo (Don Siegel - 1956) para escrever o seu livro, mas há outros filmes que são quase impossíveis não associar a Shutter Island, na sua versão cinematográfica. Entre eles, Minority Report - Relatório Minoritário (Steven Spielberg - 2002), que certa forma representa o seu contraponto tecnológico. Não é aleatoriamente que estabeleço a comparação: as personagens centrais dos dois filmes, agentes da lei responsáveis pela investigação de crimes violentos, partilham de uma mesma realidade emocional em relação à família (o seu passado encerra uma perda grave da qual nunca conseguiram totalmente recuperar, e acerca da qual frequentemente fantasiam situações de conforto), e vão passar por processos semelhantes para resolverem os casos em que estão envolvidos – processos que envolvem a correcta interpretação das "pistas" que lhe são passadas. Em Minority Report, John Anderton (Tom Cruise) recebia as dicas para os seus casos através de imagens retiradas sonhos dos precogs e, em Shutter Island, Teddy recebe mensagens e avisos através visões que tem da sua mulher.


E se estas "coincidências" não são suficientemente sólidas para fecharem uma associação, que dizer da maneira como as imagens dos crimes nos lagos nos são mostradas nos dois filmes? Da manipulação específica a que são sujeitas no próprio argumento, para confundir o protagonista (e com ele o espectador), levando-o a seguir pistas falsas, e da forma como no final essas imagens são “sincronizadas” com a realidade, revelando a verdade? Um outro ponto de contacto: Max Von Sydow, a figura sombria e predatória que paira sobre os protagonistas dos filmes e que se mantém acima de toda a intriga manipuladora…

O contraponto é a tecnologia. Se em Minority Report toda a "manipulação da verdade-realidade" se fazia em função do uso da tecnologia, em Shutter Island a tecnologia é encarada à distância, quase como uma ameaça (há inclusivamente uma paciente que se refere, com repulsa, a essa coisa “moderna chamada televisão, que faz aparecer pessoa estranhas dentro da nossa casa”), ou como um reduto para resolver os casos de psiquiatria considerados perdidos (a lobotomia transversal). Spielberg filma o futuro, Scorsese filma o passado, mas em ambos uma obsessiva demanda pela verdade oculta.
Não se espere um filme de fácil degustação - é disforme e retorcida a matéria que o constitui. A esse respeito, Scorsese nunca fez concessões.


Laeddis: Which would be worse? To live as a monster, or die as a good man?

08/12/13

Pedra-de-toque

Mais do que a investida vitoriosa das tropas rebeldes de Garibaldi através da Sicília, é a súbita aparição de uma mulher desconhecida, Angelica (Claudia Cardinale), que anuncia a inevitabilidade da mudança para a família de Don Fabrizio, Príncipe de Salina (Burt Lancaster). Uma "mudança que é necessária para que tudo possa ficar como está" - tal como na política, no seio familiar aristocrático é essencial uma "renovação de hábitos" para que o brazão subsista.


A chegada de Angelica e, antes de si, a entrada do seu pai, vêm perturbar (e alterar para sempre) a harmonia cúmplice no seio daquela família. Por entre sorrisos que se desvanecem e outros que se formam, a sala ajoelha-se aos pés de Angelica. As confidências terão de contar com novos interlocutores daí em diante.



Para Fabrizio, o homem que é uma família, avizinha-se o fecho de um ciclo - um ciclo próspero de influência e domínio que se vinha extinguindo aos poucos - mas o surgimento de Angelica, um delicado(?) anjo exterminador, afigura-se-lhe também como uma saída de continuidade.


 
 


Em Il Gattopardo - O Leopardo (1963), adaptação sumptuosa de Luchino Visconti a partir do romance homónimo cunhado por Giuseppe Tomasi di Lampedusa, retrata-se um ponto de transição, um período de guerra civil e fortes convulsões sociais, a tentativa de afogamento de um regime decrépito, a unificação de uma nação pela força das armas, e em simultâneo a extinção de uma certa aristocracia conservadora, mantida à tona por força de uma honrosa linha ancestral, mas digna e respeitada pelas classes mais baixas. Tudo nos é mostrado através do olhar de Fabrízio - uma chama cintilante que vai perdendo pouco-a-pouco a intensidade, capaz de abraçar uma "(r)evolução" que considera essencial, mas sem a resiliência suficiente para continuar ele próprio a servir de farol.  Tancredi (Alan Deloin) é o sobrinho que ama e em quem deposita a esperança de um continuidade familiar segura - a troco de um preço elevado...

06/12/13

O retorno do "Supremo Medo"

«Pigarreou um pouco para limpar a voz e começou a ler, senhor director-geral da televisão nacional, estimado senhor, para os efeitos que as pessoas interessadas tiverem por convenientes venho informar que a partir da meia-noite de hoje se voltará a morrer tal como sucedia, sem protestos notórios, desde o princípio dos tempos e até ao dia trinta e um de dezembro do ano passado, devo explicar que a intenção que me levou a interromper a minha actividade, a parar de matar, a embainhar a emblemática gadanha que imaginativos pintores e gravadores doutro tempo me puseram na mão, foi oferecer a esses seres humanos que tanto me detestam uma pequena amostra do que para eles seria viver sempre, isto é, eternamente, embora, aqui entre nós dois, senhor director-geral da televisão nacional, eu tenha de confessar a minha total ignorância sobre se as duas palavras, sempre e eternamente, são tão sinónimas quanto em geral se crê, ora bem, passado este período de alguns meses a que poderíamos chamar de prova de resistência ou de tempo gratuito e tendo em conta os lamentáveis resultados da experiencia, tanto de um ponto de vista moral, isto é, filosófico, como de um ponto de vista pragmático, isto é, social, considerei que o melhor para as famílias e para a sociedade no seu conjunto, quer no sentido vertical, quer no sentido horizontal, seria vir a publico reconhecer o equívoco de que sou responsável e anunciar o imediato regresso à normalidade, o que significará que todas aquelas pessoas que já deveriam estar mortas, mas que, com saúde ou sem ela, permanecem neste mundo, se lhes apagará a candeia da vida quando se extinguir no ar a última badalada da meia-noite, note-se que a referência à badalada é meramente simbólica, não seja que a alguém lhe passe pela cabeça a ideia estúpida de encravar os relógios dos campanários ou de retirar o badalo aos sinos pensando que dessa maneira deteria o tempo e contrariaria o que é minha decisão irrevogável, esta de devolver o supremo medo ao coração dos homens, portanto resignem-se e morram sem discutir porque de nada lhes adiantaria, porém, um ponto há em que sinto ser minha obrigação dar a mão à palmatória, o qual tem que ver como injusto e cruel procedimento que vinha seguindo, que era tirar a vida às pessoas à falsa-fé, sem aviso prévio, sem dizer água-vai, tenho de reconhecer que se tratava de uma indecente brutalidade, quantas vezes não dei nem sequer tempo a que fizessem testamento, é certo que na maior parte dos casos lhes mandava uma doença para abrir caminho, mas as doenças têm algo de curioso, os seres humanos sempre esperam safar-se delas, de modo que só quando já é tarde de mais se vem a saber que aquela iria ser a última, enfim, a partir de agora toda a gente passará a ser prevenida por igual e terá um prazo de uma semana para pôr em ordem o que ainda lhe resta de vida, fazer testamento e dizer adeus à família, pedindo perdão pelo mal feito ou fazendo as pazes com o primo com quem desde há vinte anos estava de relações cortadas, disto isto, senhor director-geral da televisão nacional, só me resta pedir-lhe que faça chegar hoje mesmo a todos os lares do país esta minha mensagem autógrafa, que assino com o nome com que geralmente se me conhece, morte.»

in As Intermitências da Morte - José Saramago - 2005

02/12/13

The Spy Who Came in from the Cold - O Espião que Saiu do Frio - Jonh le Carré - 1963

Com a curiosidade natural de quem entra pela primeira vez num autor, comecei um livro que marchou todo de seguida no mesmo dia, de uma ponta à outra, com pequenas pausas pelo meio (quantos livros terei devorado desta forma? não muitos...)

Aquilo que me impressionou mais no final da leitura foi o clima miserabilista e solitário da guerra-fria vivido pelos agentes no final da escada hierárquica institucional -  cheira a verdadeiro, a real. É assim que imaginamos que seja (ou tenha sido) a vida, o dia-a-dia, de um espião colocado em território estrangeiro. Muito se escreveu sobre o contraste evidente entre a fria e cínica verdade das histórias de le Carré e os prazeres boémios dos contos de James Bond. Em le Carré, julgando por este livro, os leitores encontram uma identificação que lhes aponta directamente para uma realidade sem maquilhagem, intensificada pelo facto de sabermos que o autor fez parte dos serviços secretos britânicos durante uma boa parte da sua vida, e que tal experiência transpareceu para a ficção narrativa que forma a espinha dorsal da sua obra

Em The Spy Who Came in from the Cold (um título ambíguo, que encerra duas realidades interpretativas diferentes, como os leitores descobrirão, desencantados, no final da leitura), os eventos decorrem primeiro em Berlim, logo após a construção do muro, depois em Inglaterra e, finalmente, em parte incerta da República Democrática Alemã, no lado comunista controlado pelo Kremlin, numa fase de intenso a acalorado jogo de bastidores entre os Estados Unidos e a União Soviética, com a Inglaterra e a França a seguirem de perto a evolução dos acontecimentos.

A personagem principal é Alec Leamas, um agente britânico caído em desgraça - ridicularizado pelo seu opositor soviético em Berlim - a quem é proposta uma segunda oportunidade: regressar àquela cidade numa missão "à margem da lei", para eliminar o seu antagonista - uma personalidade obscura que metodicamente encontrou e assassinou, um a um, todos os agentes recrutados por Leamas no terreno. Impulsionado pelo ódio e pelo desejo de vingança, e suportado por uma elaborada e morosa operação secreta de de-construção da sua personalidade, Leamas colocar-se-á na pele de agente desertor, de forma a cair nas boas graças do adversário.

A escrita de le Carré, apresar de quase estritamente funcional, é, neste livro, fluída e agradável de seguir, apesar da narrativa em si representar um constante amargo de boca. Serve fielmente o propósito de "contar um conto", e de possibilitar o suporte para a denúncia das condições psicológicas limite a que se viam submetidos os agentes secretos no terreno.

Há uma questão moral importante que é levantada explicitamente ao longo de toda narrativa e que vai servindo de muleta para justificar tanto as acções de comando vindas de cima, como o próprio sentido para a vida destes agentes: a morte e o sacrifício de alguns inocentes será sempre uma escolha necessária perante a salvaguarda da liberdade de toda uma população. le Carré lida soberanamente com a este dilema - no final, o que nos sobra é uma raiva interior contra um princípio que sabemos ser verdadeiro, mas que nos deixa quase com o cheiro a sangue nas mãos, pelas acções do protagonista. No fim da cadeia, é ele que tem de lidar com o contacto directo com "os inocentes", com resultados psicologicamente difíceis de aceitar a partir do momento eu que há um envolvimento pessoal, por mais pequeno e controlado que seja. Leamas é no fundo mais um inocente perdido numa roda trucidante de eventos e decisões que não consegue controlar.

Como ponto menos conseguido, tenho a apontar uma certa previsibilidade na intriga. A meio do livro já desconfiamos de parte da sua conclusão. le Carré deixa pistas suficientes para que o leitor se possa ir apercebendo daquilo que verdadeiramente se está a passar. O problema é que se o leitor percebe, então as pessoas que estariam a viver aquelas situações na intriga com muito mais certezas se aperceberiam...  uma pequena questão de plausibilidade que não retira de resto qualquer prazer nesta leitura. Que o diga o tempo que levei a concluí-la.

uma adaptação cinematográfica que também recomendo sem reservas, para consumir antes ou depois do livro (é como entenderem, sendo que a primeira das alternativas será aquela que revelará os "segredos"), uma obra dirigida por Martin Ritt em 1965, com Richard Burton a interpertar Leamas, num dos grandes papéis da sua carreira.

01/12/13

A perspectiva do(s) voyeur(s)


Norman Bates (Anthony Perkins) espia Marion Crane (Janet Leigh) enquanto esta se despe, através de um pequeno orifício na parede.



O fascínio de Norman e a sua condição predatória de observador insuspeito estabelecem um paralelo imediato com a situação do espectador - uma comunhão perversa de expectativas e desejos que Hitchcock frustrará logo de seguida, afastando Norman deste local privilegiado, para não lhe pesar mais tarde a consciência perante a sua mãe. Uma frustração que demorá pouco tempo a ter o seu ponto de escape...

O incómodo simultâneo que nos assalta no momento em que observamos estes planos não deriva tanto do facto de estarmos a invadir a privacidade de Marion, de quem já conhecemos os traços gerais de carácter e com quem inclusivamente já privámos numa situação de maior intimidade, mas mais da certeza de haver qualquer coisa de estranho com Norman. O desconhecido com quem partilhamos o ponto de vista... e mais algumas coisas.

Hitchcock, mestre absoluto da manipulação de perspectivas e da construção de estados de tensão psicológicos, tem aqui um dos grandes momentos da sua carreira (e em Psycho há mais uns quantos do mesmo calibre). Se porventura o impacto de uma sequência como esta nos pareça por esta altura fortemente datado, habituados que estamos à exploração muito mais aberta e flagrante de conteúdos sexuais na cultura e nos media, recordemos que em 1960 Psycho correu bastantes riscos ao filmar tamanha exposição do corpo feminino num filme mainstream, sujeitando-se a ter de fazer cortes de acordo com as indicações do Motion Picture Production Code e mais do Sr. Hays. Hitchcock, por outro lado, considerava um desafio intelectual arranjar formas criativas de contornar a regras do código e de levar os censores a aceitarem o seu ponto de vista. Há aquela célebre sequência de 2 minutos no chuveiro que demorou dias a filmar, que é composta por alguma dezenas de planos, ângulos e takes com perspectivas diferentes, e que coloca praticamente tudo à mostra. Tudo menos nudez.