26/02/20

Os homens não choram! (... acerca de "1917" e de "Paths of Glory" - parte II)

Homem que é homem não chora, e filme que é filme não perde tempo com pieguices sentimentalistas.

Mas em Paths of Glory é precisamente isso que sucede no final. A esta distância, olhando para a obra de Kubrick e considerando o quão uniformemente fria e calculista se apresenta, é irónico observar uma manifestação tão aberta e humanista, sem máscaras ou artifícios estilísticos pelo meio. E a intensidade com que nos é mostrada!

Depois de nos levar pela mão num instrutivo passeio por aquilo que de mais abjecto e repugnante há no comportamento humano, depois de nos assegurar, para lá de qualquer dúvida, que por mais que nos esforcemos, por mais sólidos e racionais que sejam os argumentos utilizados, por mais explícitos que sejam os exemplos disponíveis, mesmo à nossa frente, depois de nos explicar por A mais B que não conseguiremos nunca contrariar o egoísmo, a maldade e a tirania institucionalizados (uma marca no seu cinema), Kubrick afasta ligeiramente as nuvens negras para o lado, ensaia uma inusitada inflexão na trajectória pessimista do filme, e permite que um raio de sol nos aqueça por instantes a alma. Há esperança para a humanidade, e não é assim tão ténue quanto isso - essa também é uma das mensagens de Paths of Glory. Somos capazes do pior, mas também do melhor, mesmo em condições extremas, mesmo quando enterrados até ao pescoço num imundo lamaçal.

A determinada altura em 1917, entre duas sequências mais tensas de aflição para o protagonista, sucede um breve período de acalmia. O soldado, à beira de sucumbir de exaustão, deambula pelo mato e ouve à distância alguém a cantar. Um regimento amigo de tropas reúne-se no chão à volta de um intérprete, antes de partir para uma ofensiva. O soldado deixa-se cair junto de uma árvore e a câmara liberta-se por momentos da sua presença, dando uma curta volta por entre grupo. Tão curto é o "giro", e tanta é a pressa do realizador para voltar para junto do protagonista, que mal reparamos nas expressões dos poucos soldados que aparecem no enquadramento. Mendes revela-se menos interessado na expressão humana e mais em tornar a pegar na intensidade do fio narrativo, para não deixar esfriar a componente imediatista de tensão. Como em relação a tantas outras vertentes no filme, o tema, a canção, a voz do intérprete e o seu impacto junto das tropas quedam-se para um segundo plano praticamente irrelevante e acabam por não ser explorados o suficiente para formar massa crítica emocional.

Por se tratar de uma canção que reune a atenção das tropas à sua volta, esta sequência faz-nos recordar esses 5 minutos finais de luz em Paths of Glory. Não quero entrar em descrições desnecessárias (até porque a expressão de Kirk Douglas, antes e depois da sequência, nos conta tudo o que precisamos de saber), mas vou deixar o mais importante: as imagens dos rostos dos soldados no momento em que, ao som da voz da jovem alemã (um "troféu de guerra" à espera de ser sexualmente explorado), o elemento comum da solidariedade e compreensão se sobrepõe à brutalização imposta pela guerra. O momento em que as lágrimas se tornam protagonistas.






















25/02/20

O "último refúgio de um cobarde" (... acerca de "1917" e "Paths of Glory" - parte I)

Talvez seja injusto entrar em comparações pormenorizadas entre o mais recente filme de Sam Mendes, o aclamado 1917, e algumas outras obras de guerra, e sobre a guerra, com raízes já bem firmes na história do Cinema, mas a verdade é que a ambição evidente de Mendes, por um lado, e as matrizes que pretende homenagear, por outro, tornam quase à partida essas comparações inevitáveis. 

Um dos modelos mais facilmente reconhecíveis em 1917 é o filme Paths of Glory - Horizontes de Glória, de Stanley Kubrick, realizado em 1957 - reconhecível logo a partir do modo como a câmara é "encaixada" dentro das trincheiras e se move e segue as personagens de um lado para o outro. São aliás reconhecidos o pioneirismo obstinado na abordagem por parte de Kubrick em Paths of Glory, e o espantoso trabalho de Mendes e do seu "cinematógrafo" de serviço, Roger Deakins, na construção de um fluxo narrativo contínuo e ininterrupto em 1917 - o seu maior trunfo, por sinal.

Só que enquanto 1917 é um gigante com pés de barro, imersivo, realista e portentoso no capítulo técnico mas sofrível na substância (terá alguma?), o filme de Kubrick é uma imensa parábola social, amargo e irónico, carregado de situações absurdas e diálogos mordazes, que denuncia a cobardia, a estupidez humana e a corrupção moral que se encavalitam e escudam nas fontes de poder, em concreto nas hierarquias da patente militar.

Um desses diálogos - um que vale a pena recordar vezes sem conta porque está sempre actual - versa assim: