20/08/17

Aqui há Tigres!

La Piel que Habito - A Pele Onde Eu Vivo
Pedro Almodóvar (2011)


*** Atenção - o texto seguinte contém SPOILERS ***
(dada a estrutura narrativa não sequencial e a forma como as revelações vão sendo doseadas ao longo do filme, fará mais sentido ler o texto após a visualização da fita) 

Numa das sequências mais perturbantes do filme A Clockwork Orange, um grupo de jovens delinquentes mascarados, sob a influência de estupefacientes, sedento de "diversão", infiltra-se na residência de um escritor e aí procedem ao seu espancamento e à violação da sua mulher. A cena, de forte contraste sensorial ao opor o entusiasmo violento e selvático do grupo ao esvaziamento emocional assente na estética fria e clínica que caracteriza o cinema de Kubrick, perpassa um subtil mas repugnante sentido de voyerismo, constante desde o início (precedente, alias, a este assalto). Algo que reforça o choque que sentimos pelo nosso próprio desejo de observar o acto até ao fim. À personagem do escritor está reservado o papel mais calculista neste jogo entre cineasta e público: amordaçado e estendido no chão, depois de meia dúzia de pontapés, ele é incapaz de "fechar os olhos" ou desviar a cara da violação (tal como nós). Enquanto um dos delinquentes prende os braços da mulher atrás das costas, um outro dedica-se a recortar à tesoura duas rodelas da sua roupa, uma por cima de cada seio, ao mesmo tempo que vai ensaiando trechos de "Singing in the Rain" (... "what a glorious night....I'm ready for love..."); depois, despe-lhe o resto da indumentária - uma peça semelhante a um uniforme que lhe cobre o corpo - e expõe-lhe a carne, indefesa, pronta a saciar os desejos primários e incontidos do sexo pela força. 



Cut.

Kubrick não mostra mais, apesar de já ter mostrado demasiado.

Pelo contrário, Almodóvar, que deve ter perdido meses a imaginar como moldaria "a mesma cena" para servir os seus propósitos, não faz cut e não poupa na exploração gráfica do sexo; não lhe chega despir a rapariga, importa-lhe mostrar a violação quase até ao fim. Desta feita, não há um escritor a observar, há uma mulher amarrada a uma cadeira, a seguir o acontecimento num ecrã, através de um sistema de video-vigilância. Há também o cirurgião plástico a quem pertence a mansão, Robert Ledgard, interpretado por Antonio Banderas, e que por motivos concretos à história chega a casa a meio do ataque.

O que vemos, de várias perspectivas, atinge-nos ao nível dos instintos mais básicos, quer pelo choque natural do ultraje inerente à situação, quer pelo delírio infame dos detalhes, com pormenores que nos levam quase às gargalhadas (um efeito propositado, não haja dúvidas, porque sustentado por pequenas piscadelas de olho a um certo Almodóvar do passado - para além de que não é a primeira vez que ele filme uma violação). É cena para surpreender até os mais habituados às "transgressões" despudoradas do realizador, talvez pela crueza da encenação - a meio caminho entre a obsessão de mostrar de perto a junção dos corpos ("a única coisa que me podes oferecer é uma boa foda") e o distanciamento de mostrar sexo mecânico e premeditado através de um ecrã, mas desengane-se quem pensar que é este o choque maior que o filme tem para "oferecer" - não é, nem de perto nem de longe. Para aceitar o que está para vir depois desta sequência, é necessário um pequeno-grande "salto de fé" por parte do espectador. Um "salto de fé" que representa porventura a diferença entre gostar e não gostar do filme, no final.

Mas regressemos à sequência da violação (a esta, a "segunda", porque no filme há duas, e as duas têm algo que ver uma com a outra): enquanto a vemos, tudo parece gratuito, ofensivo e atordoantemente gratuito, e só mais tarde é que lógica trituradora da engrenagem narrativa nos vai permitir arrumar ideias e colocar as coisas nos seus devidos lugares, porque estaremos então na posse de outros conhecimentos que nos levarão a revisitar estes acontecimentos e compreendê-los.

A cena não só não é gratuita, como é fulcral para a nossa aceitação das motivações e emoções das personagens - diria até que é a mais importante do filme todo, já que significa o desenlace possível (o único, talvez) na aproximação que até aí vinha sendo feita entre Robert e Vera (a vítima da violação), pelo menos até que um nova "perturbação" (o artigo no jornal com as fotografias dos jovens desaparecidos) venha a alterar novamente a "ordem natural das coisas". Parece, ainda assim, paradoxal que esteja a falar de "emoções" num filme que insiste de forma tão doentia em as ocultar (e que por vezes as mete mesmo "dentro do armário") - mas isso não significa que não estejam lá. Penso até que é esse um dos pontos que Almodóvar pretende firmar - que estão presentes e que as encontraremos se dedicarmos algum tempo a procurá-las por baixo das camadas que fogem à nossa "aceitação adquirida". Neste aspecto, as temáticas abordadas e as ideias transmitidas (sobretudo a nível de "desvios sexuais à norma", da "procura incessante de afectos", e da sua compreensão e aceitação) em nada diferem do seu trabalho anterior, apesar do formato estético e da capa acondicionadora serem distintos (o thriller psicológico, o filme de horror com trejeitos "torture-porn", o híbrido que até aos terrenos da Ficcão Científica vai buscar uns grãos de areia). Não estou a dizer que o filme é um típico Almodóvar - porque definitivamente não é - apenas que não se afasta de algumas das suas temática mais caras.

O que sucede de tão concreto e importante para a narrativa durante essa violação?

Muita coisa. É o ponto culminante de uma série de emoções à deriva, por atar, e de factos narrativos à espera de uma resolução, que será também ponto de partida para outros tantos.

É através desta violação que Vera compreende o que uma mulher sente (física e psicologicamente) ao ser violada. Algo que lhe permite nivelar a dor e o sofrimentos pelas mesmas referências de Robert e aceitá-los como numa zona de comunhão entre ambos, um elo de contacto que passa a uni-los para lá de tudo o resto (se antes de forma divergente, agora de forma "harmoniosa", de várias maneiras). Aqui entra então a memoria da violação anterior, em conjunto com uma inversão de papéis entre vítima e agressor, entre masculino e feminino, e mais o eventual desejo de Robert em provocar uma situação que significasse o "olho-por-olho". Enquanto que esse desejo de vingança fica consumado do lado de Robert, do lado de Vera é a expiação pelo acto anterior (que ela não tem a certeza de ter cometido, mas do qual sente o peso da culpa em cima) que fica consumado. Ela paga na mesma moeda a situação que provocou. 




Paralelamente, é através da violação que fica desfeita a última barreira na aproximação entre os dois. Para ela, o acto de "salvação" protagonizado por Robert, ao matar Zeca, "o Tigre", representa finalmente o seu assumir, de forma explícita, da vontade em formarem um par amoroso (anteriormente Robert havia reagido de forma ambígua aos avanços de Vera). A situação representa também o corte dos últimos fios que a prendiam ao género masculino. Ela é violada enquanto mulher, e é enquanto mulher que arranja o seu novo parceiro amoroso/sexual. O abraço entre ambos sublinha esta ideias, mas não só.

Para Robert, a significância metafórica dos acontecimentos não é menos complexa. Ele dispara dois tiros de revolver, e, embora ambos atinjam o mesmo corpo (o de Zeca), são duas figuras distintas que está a matar. Ao apelo que não chega a ouvir lançado pela mãe, que observa a cena pelo circuito de vídeo interno, e que lhe pede ingenuamente que "mate os dois", corresponde uma percepção totalmente diferente por parte dele, que não vê duas pessoas à sua frente, mas quatro - duas por cada corpo. Com um dos tiros, Robert mata "o Tigre", o responsável pela desfiguração e morte da sua mulher anos antes; com o outro mata Vicente, o violador e também causador indirecto da morte da sua filha, uma situação que ele repesca do passado e que fantasia no presente, alterando os papeis de cada interveniente, e fazendo com que desta feita a sua pessoa chegue "a tempo" de caçar o violador. Pelos olhos retorcidos de Robert, e naquele momento, Vera assume simultaneamente o papel de sua mulher e de sua filha, unidas numa mesma figura física e sofredora, e através das quais pode exercer o desejo obsessivo de vingança e resgate sobre cada um dos respectivos prevaricadores. Com este dois tiros, Robert coloca uma pedra sobre o passado e inaugura um novo futuro, em que parte do zero - de novo com a mulher que ama a seu lado, e, de certa maneira, também com a sua filha.

Se esta situação de "paz interior", alcançado e aceite tacitamente, em simultâneo, pelo novo par, é difícil de engolir pelo espectador (é aqui que entra o "salto de fé", pelo menos até surgir a explicação), mais complicada fica se subsistirem as ideias de incesto (entre pai e filha, em sentido representativo) e de homossexualidade (entre dois homens - em sentido mais literal). Há razões fortes para que estas "acusações" possam vir à baila, mas cada uma delas é rejeitada por factos narrativos concretos. O minucioso trabalho de alteração física a que Vicente é sujeito até se tornar Vera (até se tornar na representação da mulher que Robert amava) representa a significação de um ideal de amor - é a beleza feminina que Robert pretende ter por companhia, como é de resto sugerido no início do filme, nas sequências em que a observa Vera pela câmara, lhe amplia o rosto, e se perde na contemplação da sua beleza. Por outro lado, esta figura corresponde em ultima instância à sua companheira sexual dentro da instância familiar, à sua mulher, não à sua filha.

Não há "pontos de alívio de pressão" neste La Piel que Habito - é implacável e devastador na definição de personagens (sendo relativamente fácil cairmos na ideia de que a de Banderas é incongruente e vazia), calculista e grotesco no desenvolvimento narrativo (que dá algumas voltas mirabolantes para acabar a levar, de forma "certinha", a água ao seu moinho - e aqui é importante evidenciar a experiência de um realizador veterano, essencial para colar as peças todas sem trocar as voltas à história), e gélido na sua arquitectura estética (ainda que de certa forma belo).

A dor não tem fim e a parte que fica aliviada, no final, tem um passado histórico demasiado "castrador" para que possa ser obliterada no futuro. Por estes aspectos todos, é um filme de ruptura na carreira do realizador, ficando em aberto o que vai fazer doravante. Contudo, mantém a mesma procura pela manifestação das obsessões sobre o sexo, sobre os géneros, sobre os desvios à norma reprimidos pela sociedade, e sobre a complexidade emotiva que sobre eles pode recair. Mantém também uma dose de humor subversivo que ganha contornos bastante sórdidos face à essência da história. Falta-lhe, em contrapartida, o calor e o carinho (de mãe, dir-se-ia) pelas personagens e a sua inserção num contexto social realista, aspectos que marcaram toda a sua carreira no passado. Não é um filme de fácil digestão, garantidamente.

 
Antonio Banderas, Pedro Almodóvar e Elena Anaya

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