Assisti recentemente a dois filmes de tiros e pancadaria "modernos", sem pretensões de saírem do território do "puro entretenimento" (manual de instruções: 1- desligar o cérebro, 2 - assistir com um pacote razoável de pipocas ao lado, 3 - regressar à realidade, assegurando que não restam quaisquer vincos na memória), e que na sua passagem pelas salas de cinema resultaram em assinaláveis sucessos de bilheteira — de tal forma que já se preparam as inevitáveis sequelas. Foram eles: The Equalizer - Sem Misericórdia (Antoine Fuqua, 2014) e John Wick (Chad Stahelski e David Leitch, 2014). Não sou de maneira nenhuma adverso a entrar neste tipo de projectos de bom grado, deixando de fora juízos de valor pré-concebidos. De certa maneira, é do balanço assertivo e consciente entre os objectos de entretenimento e aqueles com intenções artísticas mais vincadas que surge o equilíbrio e o prazer no seu consumo (seu, nos dois casos). Um bom filme de porrada sabe muito bem de vez em quando. É também com esta noção em mente que me permito apreciar cada obra no seu contexto específico, mas isto não impossibilita que, dentro desses mesmos espaços, haja lugar para o óptimo, para o mediano e para o execrável. Fechar os olhos a determinadas situações, a determinados exageros, certo, mas só até certo ponto.
Sobre The Equalizer, podemos evidenciar que conjuga em si todos os clichés
da estafadíssima fórmula do justiceiro impoluto que castiga os maus da
fita com o grau de violência adequado à sua malvadez (a César o que é de
César...), e que segue a receita provada em "Rambo", ou "Batman", ou "Bourne" ou... (escolham uma ou várias hipóteses) do one-man-army
que sozinho chega para todas as encomendas. Um homem de aparência "simples", interpretado por Denzel Washington, que limpa o sebo a dezenas de inimigos,
antevendo cada uma das suas estratégias combinadas e cada um dos seus
aparatosos golpes físicos (como a câmara não se cansa de o sublinhar, tudo em slo-mo), que é imune à
dor física, e que é suficientemente seguro para encaixar nas calmas o
grande oceano da dor emocional. Este homem que não chora tem
inclusivamente uma sequência à altura do "like tears in the rain" de Blade Runner — as lágrimas que escorrem dos seus olhos a rodos no
momento em que dá cabo do vilão (Marton Csokas, na pele de outro personagem estereotipado,
elevado aqui à quinta potência da crueldade e frieza) não lhe pertencem, mas descem de forma intensa pelo seu rosto, como se ele as tivesse
a verter — é absolutamente devastador e estupidificante encontrar uma
sequência desta grandeza e potencial numa personagem tão unidimensional e
vazia como a de Washington. Assim como o é encontrar referências literárias
metafóricas que batem absolutamente certas com o pathos
dessa mesma personagem. É o velho de Hemingway que trava a ultima
grande batalha da vida dele contra uma força em teoria muito superior e
que, apesar do desequilíbrio, se mantém fiel à sua natureza, é o Dom
Quixote, o cavaleiro da armadura brilhante que vive na fantasia de ainda
significar a diferença quando o mundo já "avançou" e não quer saber mais
dele (nem falta um Sancho Pança gorducho e desajeitado para
fazer parelha com Washington), e é ainda o Homem Invisível, de Ralph
Ellison (não confundir com a personagem de Wells) e a questão de quem o vê ou não
vê. Estas obras encontram de facto uma significância prática na
narrativa, mas encontram também o seu encarceramento na mais maniqueísta e
inconcebível personagem que Washington já interpretou, uma espécie de
cruzamento entre o "Man on
Fire" de Tony Scott (aí, muito mais humana e enraizada na sua dimensão intelectual,
na sua dor, na sua amargura e sentido de honra) e o Taken de Liam
Neeson (na facilidade com que despacha qualquer armário que lhe surja
pela frente). Há ainda uma pose cool e relaxada de quem viu o McQueen em Bullit umas dezenas de vezes antes de entrar para a frente das câmaras.
Hmmmm.... onde é que eu já vi esta imagem?
Este "equalizador" foi minuciosamente preparado para responder às indulgências todas do cidadão comum que clama por justiça nos bairros problemáticos, e que gostaria de ver os males deste mundo desaparecerem, principalmente aqueles que estão "acima da justiça", se possível com ajuda de umas bordoadas bem aplicadas, "que é para eles verem se gostam". Quer os vilões, quer o herói, quer as vítimas (prostitutas-criança, escravizadas por uma rede de leste com conexões ao poder), tudo foi criteriosamente pensado para encaixar nesta fórmula, para render sorrisos de satisfação pela "justiça vingadora" dinamicamente amparada na habilidade de Fuqua a mover a câmara, e com uma ajudazita da mesa de montagem. Temos então o pacato cidadão reformado (? — ainda trabalha numa Wall-Mart), que todos os dias à noite passa no café da esquina para beber um cházito, a pulverizar primeiro uma quadrilha da mafiosos de leste maus como as cobras (4 bad-guys armados até aos dentes ficam imobilizados em 19 segundos, cronometrados pelo próprio carrasco), depois a encaixar porrada nos profissionais da "limpeza" que são enviados pelo big-boss soviético himself (um esquadrão que parece saído da tropa de elite que vimos no Predador), e finalmente a ir ele mesmo à mansão hiper-vigiada desse chefão finalizar o trabalho, para ficar "em paz com a sua consciência". Denzel Washington é o apocalipse escondido no nosso vizinho do lado, o tipo amável e simpático que nos habituámos a ver chegar a casa com as compras em sacos de papel desde que se reformou (mas o que é que ele fazia mesmo antes?) —tudo muito "bairro-americano" encenado—, e que faz rebentar um mega petroleiro com a mesma calma com que todos os dias enfia a saqueta do chá dentro da chávena. Pelo meio tem inclusivamente tempo para pôr na ordem dois polícias corruptos que estorquem dinheiro aos estabelecimentos locais (em troca de "protecção"), um contexto que só marginalmente têm que ver com a narrativa principal. Washington é o bom samaritano que não tem defeitos, não tem vícios, é a máquina de matar mais letal que os Estados Unidos prepararam para as "operações especiais" da CIA, que até faz questão de apresentar uma opção pacífica e sincera aos criminosos antes de partir para a violência e lhes partir os dentes, e que apenas tem de "pedir permissão" às suas antigas chefias para tratar do assunto da "escumalha de leste que teve o azar de vir bater à sua porta". Ele é o homem que um dia foi casado, que um dia fez uma promessa à esposa, e que por esta vez vai abrir uma excepção a essa promessa - o seu opositor directo é tão mau, tão feio, tão insensível à condição humana, que obriga Washington a esse sacrifício supremo. É por isso que as lágrimas lhe escorrem no final pela face abaixo - não as dele que, como o Chuck Norris, não as pode chorar, mas por ele.
Limpe-se um pouco a maquilhagem e a sofisticação artística do processo de pós-produção (que, nos momentos nocturnos, se põe em bicos-de-pés para evocar os ambientes citadinos de Edward Hopper) e pouco mais sobra do que a rotina afinada de um género com longa tradição em Hollywood — nada de novo a acrescentar ao filão, portanto. Denzel Washington, por outro lado, é sempre uma aposta ganha; um actor seguro e carismático, que mesmo em modo de piloto-automático, sem uma personagem à altura do seu talento, consegue assegurar os mínimos do nosso contentamento.
O mesmo não se poderá dizer de Keanu Reeves, e mais da sua prestação monocórdica e robotizada em John Wick. Reeves é um ícone incontestável da nossa geração, um artista com imensa popularidade, catapultado para o estrelato por conta do êxito estrondoso da trilogia Matrix, mas de reduzidíssima versatilidade expressiva, sobretudo se considerarmos as exigência emocionais de muitos dos papéis que interpretou (ou que tentou desastradamente interpretar). Poder-se-á contrapor, de forma válida, que um filme como John Wick (tiroteios em cima de pancadaria em cima de tiroteiros em cima de... ) dispensa a presença de actor mais talentoso, mas não será essa alegação uma aceitação de que algo vai mal por essa indústria do entretenimento? Estaremos já demasiado habituados aos produtos da linhagem Van Damme, Chuck Norris e Steven Seagal para não nos importarmos com a credibilidade de uma interpretação? Aparentemente, sim. A julgar pelo retorno do investimento, industria deve saber que pode continuar a explorar o filão.
Em John Wick temos mais do mesmo — mais da mesma fórmula redutora usada em The Equalizer —, mas com algumas variações "coreográficas" que infelizmente arrastam em demasia o filme para os lados do artificialismo dos jogos de computador, um universo em que os níveis se sucedem, em que há sempre mais uma vida ao virar da esquina, e em que os elementos opositores estão dispostos pelo cenário em locais estratégicos, de forma a possibilitar a harmoniosa fluidez de movimentos do herói principal, que tem sempre alguém ao alcance de uma rotação, ou em linha de tiro directa. Se tomamos por certo que a verosimilhança não é uma finalidade a reclamar dentro deste género de fitas, torna-se por outro lado difícil fechar os olhos a alguns exageros mais puxados, que nos retiram o tapete à eventual suspensão da descrença. Reeves move-se pelo espaço como se conhecesse de antemão tudo aquilo que se vai passar, adivinhando e antecipando os tiros e golpes dos seus antagonistas, e oferecendo em troca uma espécie de bailado mortífero em que não falha por uma vez a pontaria. Chega a ter alguma graça a tentativa de o maquilhar com algumas escoriações e lesões derivadas dos combates (ver imagem acima), porque mesmo dentro da narrativa, considerando que aceitamos aquela ficção encenada, tais ferimentos não lhe tolhem a clareza de pensamento nem a precisão ou força física. Para uma perfuração abdominal, nada como uns comprimidos inibidores da dor, e é como se não a tivesse, para todos os efeitos — novinho em folha e pronto para a bordoada.
A história é do mais banal que se possa imaginar, e serve apenas para acomodar um fio condutor carregado de pretextos para encaixar sequências de acção: um grupo de delinquentes invade, por diversão, uma moradia privada, brutalizam a propriedade, maltratam o proprietário, matam-lhe o cão, e roubam-lhe, por fim, o Ford Mustang de colecção que está guardado na garagem. Tudo estaria bem se a vítima dos tabefes não fosse o mais letal assassino a soldo que o submundo já conheceu, retirado há anos do "ofício de matar" para seguir os instintos do coração, abandonando a vida de violência e casando com a mulher dos seus sonhos, entretanto falecida. O cão havia sido um presente passional, de mulher para marido, e a única recordação viva desses momentos de felicidade. À dor da perda da mulher amada soma-se agora a dor da perda da mascote oferecida pela mulher amada, e a soma das dores das perdas dá como resultado o desejo de aniquilar. O mote fica dado: John Wick não vai descansar enquanto não castigar os responsáveis pelo atrevimento, mandando-os mais cedo para a cova. Por (des)interessante coincidência, o chefe da quadrilha é filho de um influente godfather mafioso, o homem que um dia empregou Wick, e que vai por seu turno recorrer a todos os meio para impedir o vingador de matar a sua descendência.
Perdido no meio dos contorcionismos da intriga, a desperdiçar um talento multifacetado capaz de voos bem mais altos, anda Willem Dafoe (o filme esforça-se para rodear Wick de personagens secundárias que deveriam contribuir para a espessura da teia psicológica — mas que só servem no fim para encher mais o chouriço da previsibilidade e esticar o tempo de fita). Dafoe, que já foi o Messias de Scorsese, o anti-Cristo de Von Trier (ou lá perto), e o sargento revoltado com o inferno do Vietname de Stone, não escapa aqui a mais uma morte requintada, e é bem possível que não haja outro actor no cinema contemporâneo com tamanha acumulação de violência e brutalidade praticadas sobre as personagens que interpretou. Paz à sua alma, que o filme, esse, não tem nenhuma que possamos lamentar.
Eis-nos chegados à razão principal para a existência deste artigo: a obra Man on Fire — Homem em Fúria (2004), um refinado exercício de entretenimento (que nunca será para levar a sério) e uma das melhores fitas de acção de Tony Scott (realizador desaparecido recentemente).
Por incrível que pareça (e desviando por uns momentos a memória dos infinitos exemplos cinematográficos(?) que parecem apostados em comprovar que a pancadaria, para ter impacto e ser fixe, apenas exige uma dimensão física musculada e flexível aos seus executantes), não é necessário muita coisa, nem sequer exagerar na maquilhagem, para construir uma personagem de acção credível, que nos faça pensar que há um homem real lá dentro. Como? É simples. Basta passar uns tempos de volta dela em sequências sem pancadaria. É só isso. É abdicar de uma parte de tempo de filme que seria passado a encenar rotativos e golpes abaixo da cintura e substituir essas cenas por um convívio próximo da personagem. Não é dizer o que a motiva. É mostrar o que a motiva. Não é apresentar um rosto inexepressivo para sugerir um passado ambíguo, é partilhar com ela os minutos de angústia e desespero em que recorda esse passado. Não é dizer que está a sofrer, é vermos com os nossos olhos os motivos desse sofrimento. É perceber de onde surge a força anímica que vai fazer depois a diferença nos momentos de matar. É contextualizar e deixar as raízes crescerem. É centrar a(s) personagem(s) num modelo de vida credível e deixá-la(s) viver. Em Man on Fire percebemos não só que Tony Scott compreende estas regras na perfeição, mas que está disposto a estender este "tempo de partilha sem violência" junto da sua personagem principal para lá dos mínimos necessários. E com isso transforma uma fita que de outro modo seria um banalíssimo exercício de violência com carradas de efeitos de editing numa obra com uma espessura humana bastante invulgar para o segmento em questão. Ou pode ser até que o segmento não seja bem o mesmo dos tais Van Damme, Chuck Norris e Steven Seagal, talvez porque nunca trabalharam com um realizador com os níveis de inteligência e estaleca visual de Tony Scott. Olhando para a evolução dos filmes de Rocky ao longo do tempo, dir-se-ia que Stallone também aprendeu a lição às páginas tantas.
E uma personagem com o espaço e a densidade potenciais para poder ser vestida, apreendida e expandida por um dos grande actores contemporâneos é igual a meio filme garantido. Podia dizer que a outra meia é o tal exercício refinado de violência estilizada (que está lá e não desilude), mas o bonús deste filme vem de outro lado: Dakota Fanning. Na altura com 10 anos, esta deve ser uma das melhores interpretações que já vi uma criança erguer. Junte-se ao conjunto o tresloucado estereotipado composto, como costuma habitualmente, por Christopher Walken, e temos um inusitado Royal Flush na mão. É um filme realista? Não, não é, nem pretende ser (mesmo que os ambientes e cenários propostos no contexto sejam reais), mas é um filme com (pelo menos duas) pessoas lá dentro, e isso faz toda a diferença do mundo.
«Comam chumbo, escumalha!»
Em John Wick temos mais do mesmo — mais da mesma fórmula redutora usada em The Equalizer —, mas com algumas variações "coreográficas" que infelizmente arrastam em demasia o filme para os lados do artificialismo dos jogos de computador, um universo em que os níveis se sucedem, em que há sempre mais uma vida ao virar da esquina, e em que os elementos opositores estão dispostos pelo cenário em locais estratégicos, de forma a possibilitar a harmoniosa fluidez de movimentos do herói principal, que tem sempre alguém ao alcance de uma rotação, ou em linha de tiro directa. Se tomamos por certo que a verosimilhança não é uma finalidade a reclamar dentro deste género de fitas, torna-se por outro lado difícil fechar os olhos a alguns exageros mais puxados, que nos retiram o tapete à eventual suspensão da descrença. Reeves move-se pelo espaço como se conhecesse de antemão tudo aquilo que se vai passar, adivinhando e antecipando os tiros e golpes dos seus antagonistas, e oferecendo em troca uma espécie de bailado mortífero em que não falha por uma vez a pontaria. Chega a ter alguma graça a tentativa de o maquilhar com algumas escoriações e lesões derivadas dos combates (ver imagem acima), porque mesmo dentro da narrativa, considerando que aceitamos aquela ficção encenada, tais ferimentos não lhe tolhem a clareza de pensamento nem a precisão ou força física. Para uma perfuração abdominal, nada como uns comprimidos inibidores da dor, e é como se não a tivesse, para todos os efeitos — novinho em folha e pronto para a bordoada.
Não estamos no Fast and Furious, mas o "ronco do motor" é muito parecido.
A história é do mais banal que se possa imaginar, e serve apenas para acomodar um fio condutor carregado de pretextos para encaixar sequências de acção: um grupo de delinquentes invade, por diversão, uma moradia privada, brutalizam a propriedade, maltratam o proprietário, matam-lhe o cão, e roubam-lhe, por fim, o Ford Mustang de colecção que está guardado na garagem. Tudo estaria bem se a vítima dos tabefes não fosse o mais letal assassino a soldo que o submundo já conheceu, retirado há anos do "ofício de matar" para seguir os instintos do coração, abandonando a vida de violência e casando com a mulher dos seus sonhos, entretanto falecida. O cão havia sido um presente passional, de mulher para marido, e a única recordação viva desses momentos de felicidade. À dor da perda da mulher amada soma-se agora a dor da perda da mascote oferecida pela mulher amada, e a soma das dores das perdas dá como resultado o desejo de aniquilar. O mote fica dado: John Wick não vai descansar enquanto não castigar os responsáveis pelo atrevimento, mandando-os mais cedo para a cova. Por (des)interessante coincidência, o chefe da quadrilha é filho de um influente godfather mafioso, o homem que um dia empregou Wick, e que vai por seu turno recorrer a todos os meio para impedir o vingador de matar a sua descendência.
Perdido no meio dos contorcionismos da intriga, a desperdiçar um talento multifacetado capaz de voos bem mais altos, anda Willem Dafoe (o filme esforça-se para rodear Wick de personagens secundárias que deveriam contribuir para a espessura da teia psicológica — mas que só servem no fim para encher mais o chouriço da previsibilidade e esticar o tempo de fita). Dafoe, que já foi o Messias de Scorsese, o anti-Cristo de Von Trier (ou lá perto), e o sargento revoltado com o inferno do Vietname de Stone, não escapa aqui a mais uma morte requintada, e é bem possível que não haja outro actor no cinema contemporâneo com tamanha acumulação de violência e brutalidade praticadas sobre as personagens que interpretou. Paz à sua alma, que o filme, esse, não tem nenhuma que possamos lamentar.
Eis-nos chegados à razão principal para a existência deste artigo: a obra Man on Fire — Homem em Fúria (2004), um refinado exercício de entretenimento (que nunca será para levar a sério) e uma das melhores fitas de acção de Tony Scott (realizador desaparecido recentemente).
Por incrível que pareça (e desviando por uns momentos a memória dos infinitos exemplos cinematográficos(?) que parecem apostados em comprovar que a pancadaria, para ter impacto e ser fixe, apenas exige uma dimensão física musculada e flexível aos seus executantes), não é necessário muita coisa, nem sequer exagerar na maquilhagem, para construir uma personagem de acção credível, que nos faça pensar que há um homem real lá dentro. Como? É simples. Basta passar uns tempos de volta dela em sequências sem pancadaria. É só isso. É abdicar de uma parte de tempo de filme que seria passado a encenar rotativos e golpes abaixo da cintura e substituir essas cenas por um convívio próximo da personagem. Não é dizer o que a motiva. É mostrar o que a motiva. Não é apresentar um rosto inexepressivo para sugerir um passado ambíguo, é partilhar com ela os minutos de angústia e desespero em que recorda esse passado. Não é dizer que está a sofrer, é vermos com os nossos olhos os motivos desse sofrimento. É perceber de onde surge a força anímica que vai fazer depois a diferença nos momentos de matar. É contextualizar e deixar as raízes crescerem. É centrar a(s) personagem(s) num modelo de vida credível e deixá-la(s) viver. Em Man on Fire percebemos não só que Tony Scott compreende estas regras na perfeição, mas que está disposto a estender este "tempo de partilha sem violência" junto da sua personagem principal para lá dos mínimos necessários. E com isso transforma uma fita que de outro modo seria um banalíssimo exercício de violência com carradas de efeitos de editing numa obra com uma espessura humana bastante invulgar para o segmento em questão. Ou pode ser até que o segmento não seja bem o mesmo dos tais Van Damme, Chuck Norris e Steven Seagal, talvez porque nunca trabalharam com um realizador com os níveis de inteligência e estaleca visual de Tony Scott. Olhando para a evolução dos filmes de Rocky ao longo do tempo, dir-se-ia que Stallone também aprendeu a lição às páginas tantas.
Ahhhhh, já sei onde foi... foi no Man on Fire!
E uma personagem com o espaço e a densidade potenciais para poder ser vestida, apreendida e expandida por um dos grande actores contemporâneos é igual a meio filme garantido. Podia dizer que a outra meia é o tal exercício refinado de violência estilizada (que está lá e não desilude), mas o bonús deste filme vem de outro lado: Dakota Fanning. Na altura com 10 anos, esta deve ser uma das melhores interpretações que já vi uma criança erguer. Junte-se ao conjunto o tresloucado estereotipado composto, como costuma habitualmente, por Christopher Walken, e temos um inusitado Royal Flush na mão. É um filme realista? Não, não é, nem pretende ser (mesmo que os ambientes e cenários propostos no contexto sejam reais), mas é um filme com (pelo menos duas) pessoas lá dentro, e isso faz toda a diferença do mundo.
Fanning & Washington - duas intepretações em estado de graça.