13/03/14

Ultra Grande Angular

Uma das vantagens oferecidas pelas máquinas fotográficas DSLR (Digital Single-Lens Reflex) é a sua capacidade para acoplarem diferentes objectivas ao seu corpo, permitindo desta forma alargar o leque de possibilidades técnicas e artísticas do fotógrafo.

As objectivas Ultra Grande Angular - também conhecidas em português pelo acrónimo UGA - possibilitam captar ângulos de visão bastante mais abrangentes do que as objectivas que por norma acompanham os kits das DSLR, mas exigem por sua vez uma atenção e um rigor acrescidos no seu uso, uma vez que têm por particularidade a distorção física do real. Esta distorção manifesta-se de várias maneiras, consoante a distância focal a que a lente está regulada (o seu valor de "zoom") e os ângulos escolhidos de ponto de vista  perante o cenário. Por exemplo, os elementos que estão mais distantes em relação à máquina poderão aparerer nas fotografias ainda mais distantes; os elementos na periferia do enquadramento poderão aparecer "esticados"; e a inclinação ou rotação do ponto de vista, para cima ou para baixo, para a esquerda ou direita, poderá tornar as linhas verticais e horizontais do cenário invulgarmente extensas, formando arestas a partir de diagonais estranha, que os nossos olhos não vislumbram na realidade. Estas características podem e devem ser aproveitadas de forma criativa, fazendo surgir realidades fantasiosas (e fantásticas) onde antes não existiam.

Os seguintes exemplos foram captados nas instalações da livraria Ler Devagar, em Lisboa, Lx Factory, através de uma Canon 40D equipada com objectivas Ultra Grande Angular. No primeiro caso foi utilizada uma objectiva Canon 10-22mm, e no segundo uma Samyang 8mm Fisheye (e daí a distorção esferóide adicional que altera as linhas rectas, de forma concêntrica, a partir do centro da imagem). Para além da passagem a preto-e-branco, e uma vez que nenhuma fotografia sai assim de uma 40D, a edição teve por objectivo tornar o contraste mais intenso - aproximar mais as zonas de claridade do branco absoluto, e as de sombras e escuridão do preto absoluto, deixando visível menos "zona cinzenta intermédia". Porque a verdadeira cor dos livros é "extraída", através do processo da sua leitura, a partir de linhas a preto-e-branco...





05/03/14

Por um canudo


«You see, anything indirect is stronger, in many cases at least, because you leave it or you hand it over to the imagination of your audience. And I’ve always been trusting my audience to have imagination, otherwise they should stay out of the cinema.» - Douglas Sirk


Aviso: o seguinte texto contém spoilers/revelações sobre o enredo de O Filme Lego.

É sabido de fonte segura que as boas intenções fazem fila à porta inferno, aguardando que os arautos de mefistófeles venham indicar a câmara de sofrimento que lhes está reservada, a fim de suportarem as tormentas da danação eterna. Apenas assim de compreende como esta película de animação para "crianças e adultos", didática até ao limite do moralismo bem comportado e displicente, conseguiu chegar às salas de cinema aqui pelo piso zero. Entende-se que hoje em dia é comercialmente arriscado colocar nas salas filmes que obriguem a pensar - ou mesmo que deem tempo suficiente ao espectador para que este o possa fazer... por sua iniciativa. O mundo não está para aí virado: as rotações cada vez mais rápidas da vida moderna geram preguiça, potenciam que as pessoas agradeçam(!) que pensem por elas nos tempo de lazer - desligar o raciocínio por uns instantes é bom para recuperar os rácios de actividade "normais" nos centros de decisão. O mais recente filme da Lego destaca-se precisamente neste capítulo: o da imbecilização cúmplice, voluntária e agradecida por parte da plateia.

Chega até aí por conta de um enredo com a espessura intelectual de uma folha papel vegetal, plagiando e pilhando daqui e dali, e remendado os retalhos com duas tiras de fita-cola (ironia das ironias, um enredo que apregoa aos sete ventos a importância da criatividade e do "livre pensamento" - é essa, aliás, a sua principal mensagem mobilizadora); por conta também da repetição ad-nauseum de referências cinéfilas cool mais do que estafadas (todas de identificação imediata - não para entreter as crianças, que não as apanhariam de qualquer maneira, mas para os pais terem qualquer coisa a que se agarrar: o conforto amparado nalguns grandes sucessos do cinema de Hollywood, como Matrix - saga onde O Filme Lego vai buscar o fio condutor da distopiazita tecnológica e do zé ninguém com falta de auto-estima que se vai tornar no "escolhido", e consequentemente salvar do mundo -, Star Wars, Terminator, The Lord of the Rings, Flash Gordon, etc, etc, a lista é longa); por conta ainda da aceleração da montagem até à velocidade warp estonteante em que nada se distingue no ecrã - um pouco à laia da "desenvoltura artística" a que Michael Bay nos habituou nas sequências de acção dos mais recentes capítulos da saga Transformers: montanhas, resmas, paletes de partícula, peças, componentes e detritos, todos muito coloridos e texturados, a espalharem-se pelo ecrã em todas as direcções, filmados por vinte câmaras distribuidas em vinte pontos de vista diferentes, para que no fim caibam vinte planos "na esgalha" em dois segundos de fita editada. Não importa tornar nítido o que está a suceder aos elementos dentro das coreografias, não importa que não se consiga distinguir de que trata em concreto a acção, importa antes cativar a plateia berrando-lhe aos ouvidos, enchendo-lhe o campo de visão com movimentos vertiginosos e cores garridas. E a Lego - marca, brinquedo, conceito, universo -, assente que está numa estrutura feita de pequenas peças interactivas, fornece o tipo de dimensão perfeita onde este crime pode ser impunemente praticado: o assassinato consentido e condescendente do cérebro do espectador - estamos no território do vale tudo a céu aberto, em que a narrativa metaforiza a bel-prazer as brincadeiras das crianças no plano real, ou seja, sempre que encontrem um beco sem saída, toca de inventar um plano de fuga no momento, de construir uma geringonça que permita escapar para outro mundo (uma mota num segundo, um submarino em dois, uma nave espacial em três), toca de fazer aparecer do nada mais personagens para ajudar à briga, toca de misturar as peças do Star Wars com as dos heróis da DC, Batman, Mulher Maravilha, e por aí fora. A intenção é boa no papel, mas esfrangalha qualquer intenção de dotar a narrativa de uma lógica, tornando pelo caminho o mecanismo Deus Ex Machina numa norma rotineira, retirando-lhe o efeito surpresa do in-extremis vindo do nada que lhe dá o nome. Algo que não sucedia, por exemplo, em Força Ralph!, obra que também misturava vários universos e personagens distintos de forma promíscua, mas em que os factos narrativos obedeciam quer à lógica de cada universo, quer à explicitação faseada das regras que regiam cada uma das personagens dentro desses contextos - nada era forçado ou atirado ao acaso seguindo a fórmula da "fuga para a frente".

É (ou era) também boa a intenção de estabelecer um paralelo entre a personagem de Emmet, o boneco que personifica "o escolhido" no mundo lego, e a personagem da criança que no mundo real brinca com ele, atribuindo depois ao seu Pai a equivalência da figura do ditador tirânico "Lorde Negócios", que pretende colar - com uma bisnaga de cola gigante - as peças todas no mundo imaginário. Este conflito entre pai e filho gira em torno dos objectivos de cada um - enquanto que o Pai/Lorde Negócios tenciona fazer do mundo lego um lugar estático, a maquete de uma cidade que não serve para brincar, seguindo o manual de construção de cada peça à risca, e deixando depois os resultados inalterados/colados perpetuamente, Emmet/filho pretende libertar-se das amarras e usar as peças misturando-as, destruindo para construir diferente, seguindo o impulso e a criatividade do momento, ao sabor das aventuras que vai imaginando (em confronto, basicamente, estão as duas formas de brincar com o Lego na vida real). O problema é a abordagem ao assunto, e surge aqui de novo a questão da imbecilização consentida do espectador, devido neste caso à infantilização patética da figura do pai, e que, para além dessa faceta enjeitada, muda de atitude/filosofia em menos de um fósforo (para que a mensagem seja tão explícita e fácil de apreender quanto possível, suponho). Um problema que de resto não é exclusivo deste filme (basta ligar o canal Disney para apanhar uma sucessão de séries adolescentes que fazem das figuras paternas idiotas bem humorados). Engula quem quiser. Vou apenas mencionar um nome para que não se invoquem os argumentos condescendentes do "filme de família", da necessária mensagem moral conciliadora, e da eventual falta de percepção das crianças para assuntos mais "adultos": Hayao Miyazaki. Quão infinitamente distantes ficam as suas obras de animação "para a família" deste tipo de fast-food reciclada e requentada na caçarola Hollywood - e sem abdicarem em momento algum de uma forte mensagem moral.

Para além das mazelas provocadas na vista, é penoso ver um punhado de boas ideias serem tão prontamente despejadas no lixo por falta de sensibilidade e criatividade para as aproveitar, ainda para mais quando são propagandeadas com a chancela da Lego, uma empresa da velha guarda que soube adaptar-se às mudanças tecnológicas modernas mantendo o seu brinquedo inalterado - a mais valia que por si só vai puxar para o cinema os adultos ávidos por recordarem a magia nostálgica desses momentos de infância. Debalde.

03/03/14

O diabo de andar com coisas cá dentro

«– Para sair no próximo número do jornal, se puder ser. Pago o que for preciso.
O Medeiros desdobrou o papel, desfez-lhe os vincos um a um com a unha enorme do polegar, a unha da viola, e pôs-se a ler. Daí a nada, erguia os olhos assombrado:
– E quer o senhor que eu lhe estampe uma coisa destas na Comarca?
O outro baixou o rosto inexpressivo:
– Exactamente.
Afastou a papelada da secretária para os lados como se lhe faltasse o ar, afeiçoou melhor os óculos ao nariz afilado, e na esperança de ter confundido as coisas começou a ler o documento outra vez. Mas não. Ali estava de facto exarada a tinta verde, numa caligrafia de mão pouco segura, a confissão pasmosa:

Eu, Álvaro Rodrigues Silvestre, comerciante e lavrador no Montouro, freguesia de S. Caetano, concelho de Corgos, juro por minha honra que tenho passado a vida a roubar os homens na terra e a Deus no céu, porque até quando fui mordomo da Senhora do Montouro sobrou um milho das esmolas dos festeiros que despejei nas minhas tulhas.
Para alguma salvaguarda juro também que foi a instigações de D. Maria dos Prazeres Pessoa de Alva Sancho Silvestre, minha mulher, que andei de roubo em roubo, ao balcão, nas feiras, na soldada dos trabalhadores e na legítima de meu irmão Leopoldino, de quem sou procurador, vendendo-lhe os pinhais sem conhecimento do próprio, e agora aí vem ele de África para minha vergonha, que lhe não posso dar contas fiéis.
A remissão começa por esta confissão ao mundo. Pelo Padre, pelo Filho, pelo Espírito Santo, seja eu perdoado e por quem mais mo puder fazer.

Saiu da segunda leitura como da primeira. De boca aberta. Que um sujeito arredondasse um tanto os preços de balcão, percebia; que descesse a extorquir uns alqueires de milho aos sobejos dum santo, percebia também; que enfim, dando o real valor a uma procuração, vendesse meia dúzia de pinhais alheios, porque é que não havia de perceber se as tentações, com mil demónios, são tentações para isso mesmo? Mas lá vir confessá-lo em público, na primeira página dum jornal, francamente, entender semelhante coisa era para o Medeiros como teimar com a cabeça numa aresta de granito.
Encarou de novo o rosto gordo do lavrador do Montouro. Feições paradas, sonolentas. Havia porém um ar de seriedade naqueles olhos pouco ágeis, na linha branda da boca, no beiço levemente caído, na cinza das têmporas, que impedia o jornalista de concluir no íntimo, decisivamente: é um imbecil; e contudo seria difícil avaliar o caso de outro ângulo; claro que não ia imprimir a declaração sem mais nem menos: a coisa tem a sua gravidade, envolve terceiros, o homem é capaz de ser de facto parvo e pode a família aparecer-me depois com exigências, desmentidos, trapalhadas:
– Calculo que tenciona fazer um acto público de contrição?
– Tenciono. Na primeira página, letra gorda, se for possível.
– E pode saber-se porquê?
Ajeitou-se no cadeirão. Tinha pousado o chapéu nos joelhos e afagava-o com os dedos brancos, grossos:
– É preciso ter em dia as contas com Deus e com os homens. Sobretudo com Deus.
– Claro, é preciso ter isso em ordem. E depois?
– Depois é o diabo andar com estas coisas cá dentro. A pesar, a moer.»

In Uma Abelha na Chuva - Carlos de Oliveira - 1953